Por Karina Paradela Cunha da Silva
O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), revogou, nesta segunda-feira (15), parte da liminar de sua autoria que suspendia a vigência do piso salarial da enfermagem.
O Ministro revogou parcialmente a medida cautelar (ADI 7222) deferida em 04.09.2022, a fim de que sejam restabelecidos os efeitos da Lei nº 14.434/2022, com exceção da expressão “acordos, contratos e convenções coletivas” constante do seu art. 2º, § 2, para que seja implementado o piso salarial nacional por ela instituído, nos seguintes termos:
(i) em relação aos servidores públicos civis da União, autarquias e fundações públicas federais (art. 15-B da Lei nº 7.498/1986), a implementação do piso salarial nacional deve ocorrer na forma prevista na Lei nº 14.434/2022;
(ii) em relação aos servidores públicos dos Estados, Distrito Federal, Municípios e de suas autarquias e fundações (art. 15-C da Lei nº 7.498/1986), bem como aos profissionais contratados por entidades privadas que atendam, no mínimo, 60% de seus pacientes pelo SUS (art. 15-A da Lei nº 7.498/1986), a implementação da diferença resultante do piso salarial nacional deve se dar em toda a extensão coberta pelos recursos provenientes da assistência financeira da União;
(iii) em relação aos profissionais celetistas em geral (art. 15-A da Lei nº 7.498/1986), a implementação do piso salarial nacional deve ocorrer na forma prevista na Lei nº 14.434/2022, a menos que se convencione diversamente em negociação coletiva, a partir da preocupação com eventuais demissões.
Quanto aos efeitos da presente decisão:
- a) em relação aos profissionais referidos nos itens (i) e (ii), eles se produzem na forma da Portaria GM/MS nº 597, de 12 de maio de 2023.
- b) em relação aos profissionais celetistas em geral, para os salários relativos ao período trabalhado a partir de 01º.07.2023.
Importante frisar que o Ministro Luís Roberto Barroso reputou oportuna a revogação da medida cautelar em favor dos profissionais da enfermagem do setor privado em geral, mas ressalvou a possibilidade de que, em negociações coletivas, se convencione diferentemente da lei, tendo em vista a preocupação com eventuais demissões.
Determinou ainda que, em relação aos profissionais celetistas em geral, os efeitos da decisão serão aplicados aos salários relativos ao período trabalhado a partir de 01º.07.2023.
Barroso reforçou que
“O diferimento dos efeitos da lei em relação ao setor privado se destina a garantir o tempo para a adoção das ações e acordos necessários para que a medida cautelar deferida nestes autos cumpra integralmente o seu propósito, de evitar uma crise no setor de saúde, com repercussão indesejada sobre a manutenção de postos de trabalho e a qualidade do atendimento de saúde de toda a população.”
A decisão será incluída para referendo pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em sessão virtual.
SOBRE O TEMA:
O piso da enfermagem foi aprovado pelo Congresso em 2022, Lei nº 14.434/2022, mas acabou suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro do mesmo ano visto que o texto não previa a origem dos recursos necessários para arcar com os reajustes no serviço público, bem como para avaliação dos impactos esperados sobre (i) a situação financeira de Estados e Municípios; (ii) a empregabilidade; e (iii) a qualidade dos serviços de saúde.
Em dezembro de 2022, foi promulgada a Emenda Constitucional 127, visando viabilizar o pagamento dos pisos salariais definidos pela Lei nº 14.434/2022, ao estabelecer que compete à União prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios e às entidades filantrópicas, para o cumprimento dos pisos salariais profissionais nacionais para o enfermeiro, o técnico de enfermagem, o auxiliar de enfermagem e a parteira; ao estabelecer o superávit financeiro dos fundos públicos do Poder Executivo como fonte de recursos para o cumprimento dos pisos salariais profissionais nacionais para o enfermeiro, o técnico de enfermagem, o auxiliar de enfermagem e a parteira; e dar outras providências.
De acordo com Barroso, a aprovação da EC 127/2022 “constituiu providência relevante para possibilitar o cumprimento dos pisos salariais sem que sobreviesse maior prejuízo às finanças dos entes subnacionais, à empregabilidade no setor de saúde e, em último grau, à qualidade dos serviços de saúde”.
Em abril deste ano, foi aprovada, e posteriormente sancionada, a Lei nº14.581/2023, que abre crédito especial, no valor de R$ 7.300.000.000,00 (sete bilhões e trezentos milhões de reais), ao Orçamento da Seguridade Social da União, em favor do Ministério da Saúde, para atendimento às operações de “Assistência Financeira Complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o Pagamento do Piso Salarial dos Profissionais da Enfermagem”.
A publicação da referida lei foi seguida pela edição da Portaria GM/MS nº 597, de 12 de maio de 2023, que estabelece os critérios e parâmetros relacionados à transferência de recursos para a assistência financeira complementar da União destinada ao cumprimento dos pisos salariais nacionais de enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem e parteiras no exercício de 2023.
O Ministro ressaltou que, com a aprovação da Lei nº14.581/2023, assim como a publicação da portaria do Ministério da Saúde, “verifica-se que a medida cautelar deferida nestes autos cumpriu parte do seu propósito, já que mobilizou os Poderes Executivo e Legislativo a destinarem os recursos necessários para custeio do piso salarial pelos entes subnacionais e entidades filantrópicas”.
Em sua decisão, Barroso ressaltou que
“No caso ora analisado, há fundada suspeita de que o financiamento instituído pela EC nº 127/2022 e pela Lei nº 14.581/2023 não seja suficiente para fazer frente à integralidade do custo suportado por Estados, Distrito Federal e Municípios; em especial se considerado o impacto sobre as entidades integrantes da rede complementar do SUS, que lhes prestam serviços mediante convênio ou contrato. Informações constantes dos autos dão conta de que o impacto financeiro da implementação do piso salarial nacional da enfermagem, no primeiro ano, seria de R$ 10,5 bilhões somente para os Municípios (doc. 963).”
Desse modo, concluiu que
“Nesse cenário, a previsão de financiamento federal nos termos dos atos normativos editados justifica a revogação apenas parcial da medida cautelar. Assim em relação aos Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como às entidades privadas que atendam, no mínimo, 60% (sessenta por cento) de seus pacientes pelo SUS, a obrigatoriedade de implementação do piso nacional só existe no limite dos recursos recebidos por meio da assistência financeira prestada pela União para essa finalidade. Isso não impede, evidentemente, a implementação do piso no montante previsto pela Lei nº 14.434/2022 pelos entes que tiverem tal possibilidade, à luz da sua conjuntura econômico-financeira.”
Em segundo ponto, ponderou que
“Sob o segundo aspecto, cabe ressaltar que o financiamento instituído pela União não atenua o impacto sofrido pelo setor privado em geral, uma vez que se destina apenas aos entes federativos subnacionais e às entidades da rede complementar do SUS. Nesse ponto, subsistem os riscos dos efeitos nocivos mencionados na medida cautelar; quais sejam, a probabilidade de demissões em massa de profissionais da enfermagem, notadamente no setor privado e o prejuízo à manutenção da oferta de leitos e demais serviços hospitalares.
Por outro lado, também há razões que justificam o temperamento da medida cautelar em relação ao setor privado. Não é razoável que os profissionais de enfermagem do setor público e da rede complementar do SUS façam jus ao recebimento do piso salarial, e aqueles do setor privado, beneficiários do art. 7º, V, da Constituição, não sejam contemplados com o mesmo direito.”
[…]
“Nesse cenário, reputo oportuna a revogação da medida cautelar em favor dos profissionais da enfermagem do setor privado em geral, mas ressalvo a possibilidade de que, em negociações coletivas, se convencione diferentemente da lei, tendo em vista a preocupação com eventuais demissões. Vale ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que “[s]ão constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuem limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas (…), desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis” (ARE 1.121.633, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 02.06.2022).
Em linha de princípio, tenho que a fixação de piso salarial nacional por lei federal não constitui direito absolutamente indisponível, de modo que o acordo ou a convenção coletiva que reduza o seu valor deve prevalecer sobre o legislado, em prestígio à autonomia coletiva da vontade.”
[…]
“Para viabilizar tal possibilidade, mantenho suspensos os efeitos da expressão “acordos, contratos e convenções coletivas”, constante do art. 2º, § 2º, da Lei nº 14.434/2022[1].”
Sob tais fundamentos Barroso decidiu restabelecer o piso nacional da enfermagem, técnico de enfermagem, auxiliar de enfermagem e parteira; determinou que os valores devem ser pagos por estados, municípios e autarquias nos limites dos recursos repassados pela União; e, no caso da iniciativa privada, abriu a possibilidade de que, em negociações coletivas, se convencione diferentemente da lei, tendo em vista a preocupação com eventuais demissões.