O Supremo Tribunal Federal (STF), nos Recursos Extraordinários nº 949.297 e 955.227, temas 881 e 885 da repercussão geral, definiu a seguinte tese: “as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”.
O STF parece ter agido bem ao assim decidir, pois, caso apenas uma parcela de contribuintes deixasse de recolher, para sempre, um determinado tributo, com base em sentença transitada em julgado contrária a posterior decisão do STF, haveria nítida violação aos princípios da isonomia tributária e da livre iniciativa, devendo a coisa julgada ceder diante desses princípios, por melhor concretizarem a vontade constitucional no caso analisado.
Também caminhou bem o STF ao entender pela incidência do princípio da “irretroatividade”, de modo que a “cessação automática” não atinja os efeitos pretéritos de decisões transitadas em julgado. Isto é, os fatos geradores anteriores à decisão do Supremo não podem ser tidos como ocorridos, uma vez que, por força de decisão transitada em julgado, inexistia relação jurídico-tributária até então.
Coisa julgada e possibilidade de alteração de seus efeitos pretéritos
Porém, não se pode inferir dos “leading cases” em questão que o STF proibiu qualquer modificação dos efeitos pretéritos de decisões inconstitucionais transitadas em julgado. O que se estava em discussão era tão apenas a “cessação automática dos efeitos prospectivos” de decisão judicial passada em julgado, mas não a possibilidade de sua “rescisão” e consequente revogação de seus efeitos pretéritos por contrariedade ao novo entendimento do STF, embora o ministro Gilmar Mendes tenha vertido alguns argumentos obter dictum em seu voto a respeito do tema [1].
Dessa forma, mantém-se hígida a jurisprudência do STF firmada na ADI n º 2.418 (validando a eficácia rescisória da impugnação ao cumprimento de sentença, quando a decisão exequenda estiver em contrariedade a entendimento vinculante do STF, desde que anterior ao trânsito em julgado da decisão) e no RE nº 730.462, tema 733 da repercussão geral (no sentido do cabimento, em tese, da ação rescisória para desconstituir coisa julgada inconstitucional, mesmo quando o precedente do STF for posterior ao trânsito em julgado da decisão rescindenda, observado o respectivo prazo decadencial de dois anos).
Assim, continua possível que uma decisão vinculante do STF tenha impacto nos efeitos pretéritos de decisões anteriores transitadas em julgado a favor do contribuinte. Todavia, tal hipótese nunca se dará de forma automática, sendo necessário que a Fazenda Pública apresente: 1) impugnação ao cumprimento de sentença, com eficácia rescisória (artigo 535, §5º, CPC) ou 2) ação rescisória propriamente dita (artigo 535, §8º, CPC e artigo 966, V, CPC).
Súmula nº 343/STF
Também continua em vigor a Súmula nº 343 do STF [2], assim como a tese fixada no RE nº 590.809 (tema nº 136 da repercussão geral), que, em conjunto, inviabilizam qualquer possibilidade de alterações dos efeitos pretéritos de decisão transitada em julgado, não se admitindo a rescisória quando: 1) a decisão rescindenda estava, à época de sua prolação, em consonância com o entendimento do Plenário [3] do STF, ou 2) quando a matéria era controvertida no âmbito do próprio STF [4].
Assim, a Fazenda Pública possui ao seu alcance os dois remédios processuais anteriormente descritos (impugnação ao cumprimento de sentença e ação rescisória) para desconstituir integralmente coisa julgada inconstitucional, ressalvadas as hipóteses protegidas pela Súmula nº 343/STF.
Inconstitucionalidade do artigo 535, §8º, CPC (prazo decadencial móvel da ação rescisória a contar da decisão do STF)
Enquanto a eficácia rescisória da impugnação ao cumprimento de sentença (artigo 535, §5º, CPC) foi chancelada pelo STF na ADI nº 2.418 (assim como no RE nº 611.503, tema nº 360 da repercussão geral, e, mais recentemente, na ADI nº 3.740), o Tribunal ainda não se debruçou sobre a constitucionalidade do prazo da ação rescisória previsto no artigo 535, §8º, CPC, in verbis:
“Artigo 535. (…)
§5º Para efeito do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal , em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso. (…)
§8º Se a decisão referida no §5º for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.”
Deveras, o prazo de dois anos de uma rescisória a contar do “trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal”, e não do trânsito em julgado da decisão rescindenda, é manifestamente inconstitucional.
Ao contrário da impugnação ao cumprimento de sentença com eficácia rescisória, cujo prazo é de 30 dias a contar da intimação da Fazenda Pública e não comporta dilação, o aludido prazo de dois anos para o ajuizamento da rescisória é totalmente “móvel”, dependendo de evento futuro e incerto (se e quando for proferida decisão do STF em sentido contrário à decisão rescindenda).
A título de exemplo, um contribuinte que tenha deixado de recolher (ou restituído) determinado tributo em razão de uma decisão transitada em julgado no ano de 2010, poderia ter contra si ajuizada uma ação rescisória, caso a referida decisão acabasse contrariando precedente posterior do STF a ser firmado no ano de 2035, ocasião em que a Fazenda Pública teria o direito de ajuizar rescisória no prazo de dois anos a contar do trânsito em julgado desse precedente, ou seja, até 2037. Em outras palavras, o contribuinte poderia ser instado a devolver 27 anos de tributos não recolhidos.
Ainda que se autorizasse o Fisco a cobrar apenas os créditos tributários a contar dos cinco anos anteriores à decisão do STF (2030 em diante), aplicando-se por analogia o lustro decadencial do artigo 173 do CTN, mesmo assim os prejuízos financeiros ao contribuinte seriam drásticos. Não é toda empresa que ostenta reserva financeira suficiente para custear cinco longos anos de tributação.
É certo que a coisa julgada, assim como qualquer direito, não é um direito absoluto (a tanto que o STF já reconheceu a constitucionalidade dos mencionados mecanismos processuais de eficácia rescisória — impugnação ao cumprimento de sentença e a própria ação rescisória, além da cessação automática dos efeitos prospectivos de decisão passada em julgado). Porém, a coisa julgada ainda é um direito fundamental, que não pode ser abolido (artigo 5º, XXXVI c/c artigo 60, §4º, IV, da CF/88).
O artigo 535, §8º, do CPC é, sem sombra de dúvida, inconstitucional. Ao contrário da ratio decidendi dos leadings cases 881 e 885, que prestigiou a isonomia tributária, livre iniciativa e livre concorrência em detrimento da coisa julgada, na situação ora em análise tem-se que a “mobilidade” do prazo decadencial da rescisória contando a partir da decisão do STF (evento futuro e incerto), acaba por estilhaçar por completo os pilares da segurança jurídica, da estabilidade das relações sociais e da livre iniciativa, acarretando grave crise financeira aos contribuintes e oportunizando a renovação permanente de lides já decididas.
Nesse sentido, vale notar que embora o artigo 535, §8º, do CPC não tenha sido objeto da ADI nº 2.418, o ministro Roberto Barroso expôs na oportunidade o seu imenso desconforto com esse “dies a quo” do prazo da rescisória a contar da decisão do STF:
“O maior desconforto que eu senti não é o objeto desta discussão e foi levantado com a habitual agudeza pelo ministro Celso de Mello, que é a modificação do termo a quo para a contagem do prazo decadencial da ação rescisória. (…) Portanto o prazo decadencial não fluirá mais a partir da sentença ou do trânsito em julgado, passa a ser um termo inicial de decadência totalmente móvel. (…) Eu preciso dizer que a gente sabe que está ficando velho quando tem dificuldade de lidar com uma ideia nova, esta me surpreendeu, e eu, verdadeiramente, gostaria de refletir um pouco sobre essa possibilidade, porque aí eu acho que talvez tenha um impacto sobre a coisa julgada um pouco dramático.”
Portanto, espera-se que o STF venha a declarar futuramente a inconstitucionalidade do artigo 535, §8º, do CPC, por ofensa, notadamente, à segurança jurídica, à estabilidade das relações sociais e à livre iniciativa.
Alternativa: interpretação sistemática do artigo 535, §8º, CPC
No mínimo, tal dispositivo deve ser interpretado não em sua literalidade, mas em conformidade com os preceitos acima e levando-se em conta o próprio capítulo em que está inserido no Código de Processo Civil. Isto é, para a sua incidência, faz-se necessária a existência de um cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública pendente de julgamento. Se assim não fosse, o aludido prazo “móvel” teria sido inserido pelo legislador no capítulo próprio da ação rescisória (artigos 966 e seguintes).
Desse modo, a Fazenda Pública poderia ajuizar ação rescisória no prazo de dois anos a contar da decisão do STF (ainda que já escoado o prazo de dois anos a contar da decisão transitada em julgado), desde que pendente de julgamento contra ela um cumprimento de sentença, que seria suspenso até o desfecho da rescisória.
Por outro lado, uma vez perfectibilizada a execução do título judicial transitado em julgado, o que se dá com 1) a prolação de decisão, não mais passível de recurso, que acolhe o cumprimento de sentença e determina a expedição de requisição de pequeno valor ou precatório (ainda que pendentes de pagamento [5]), ou 2) a execução administrativa do título judicial, por meio, por exemplo, da transmissão de declaração de compensação tributária administrativa (ainda que pendente de homologação pelo Fisco); e já tendo escoado o prazo de dois anos da rescisória a contar da decisão transitada em julgado (artigo 975, CPC), não é mais possível qualquer alteração nos efeitos pretéritos da decisão passada em julgado, sendo inaplicável o artigo 535, §8º, CPC, preservando-se a coisa julgada em definitivo [6].
[1] Trecho do voto do ministro Gilmar Mendes: “(…) o ordenamento jurídico, seja no regime do CPC/1973 ou no CPC/2015, possui dois remédios cabíveis para solução dessa incongruência: i) impugnação em sede de cumprimento de sentença com base na inexigibilidade do título judicial transitado em julgado (§5º do artigo 535 do CPC/15 e artigo 475-L, § 1º, além do artigo 741, parágrafo único, do CPC/73); e ii) ação rescisória (§8º do artigo 535 do CPC e artigo 485, V, do CPC/73) (…) Reforço que esta Corte não pode fazer letra morta ao §8º do artigo 535 do CPC/15 sem declará-lo inconstitucional e tampouco à tese 733, fixada em sede de repercussão geral no RE 730.462, relator ministro Teori Zavascki, Tribunal Pleno, DJe 9.9.2015 (…)”.
[2] “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.
[3] Não obstante a tese fixada no tema nº 136 tenha se referido a decisões do “Plenário” do STF, entendemos pela possibilidade de aplicação da Súmula nº 343 do STF também quando a decisão rescindenda estiver em conformidade com decisões monocráticas ou de Turmas do STF. Ora, considerando que o referido enunciado sumular se aplica quando a matéria é controvertida no STF (decisões monocráticas ou de Turma em sentidos diversos), com muito mais razão deve ser obstada a rescisória quando os julgados do STF, ainda que de órgão (s) fracionário (s), se davam, todos eles, exatamente no mesmo sentido da decisão rescindenda. Em ambas as situações não há pronunciamento do plenário, sendo que, para a última situação, a força persuasiva do julgado do STF é muito maior para os Tribunais inferiores, visto não haver outro entendimento no âmbito do próprio Supremo senão aquele adotado pela decisão rescindenda. Assim, a Súmula nº 343/STF deverá ser sempre aplicável, em matéria constitucional, quando houver ao menos uma decisão do STF (ainda que monocrática) no mesmo sentido da decisão rescindenda.
[4] “(…) A limitação do cabimento da ação rescisória em matéria constitucional cingiu-se a duas hipóteses específicas, quais sejam, 1) quando o acórdão rescindendo estiver em conformidade com jurisprudência do Plenário desta Casa à época, mesmo que posteriormente alterada e 2) quando a matéria seja controvertida no âmbito deste Supremo Tribunal Federal. Precedentes. 4. Para efeito de aplicação da Súmula 343/STF em matéria constitucional indispensável perquirir 1) se a matéria era controvertida neste STF e 2) se a decisão rescindenda estava em consonância com o entendimento deste Tribunal à época. Assim, caso a resposta para ambos os questionamentos seja negativa, inaplicável o entendimento sumulado e, portanto, cabível, em tese, a rescisória. Precedentes (…)”. (ARE 1332413 AgR-segundo, relator (a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 21/06/2022).
[5] Caso fosse admitido o ajuizamento de rescisória enquanto pendente de pagamento o RPV ou precatório, ou pendente de homologação a compensação tributária administrativa, ter-se ia novamente um prazo decadencial “móvel” para o ajuizamento da rescisória, afrontando de igual forma a segurança jurídica e demais postulados constitucionais, considerando, ainda, que vários entes federativos demoram anos, ou décadas, para quitar seus precatórios.
[6] Há outras interpretações na doutrina, a exemplo: “Para que possa dar-se como constitucional, o dies a quo fixado no texto normativo sob comentário deve ser interpretado conforme a Constituição. Assim, somente pode ser iniciado o prazo da rescisória a partir do trânsito em julgado da decisão do STF, se ainda não tiver sido extinta a pretensão rescisória cujo prazo tenha-se iniciado do trânsito em julgado da decisão exequenda. Em outras palavras, o que o texto comentado autoriza é uma espécie de alargamento do prazo da rescisória que está em curso”. (Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código de Processo Civil comentado, ed. 2022).
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Por Jorge Roque, advogado do escritório Godoi & Zambo Advogados Associados, mestre em Direito Fiscal pela Universidade de Coimbra, especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e pós-graduado em Planejamento Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET/SP).
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