Opinião: Fisco restringe crédito de PIS/Cofins sobre alimentação resultante de acordo coletivo

Ao apagar das luzes de 2022, a Receita Federal inaugurou uma sucessão de novas regras para a apuração da Contribuição ao Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), mediante a publicação da Instrução Normativa (IN) nº 2.121, em 20 de dezembro.

Entre aquelas que saltam aos olhos estão as regras que restringem o real alcance do vocábulo “insumo” para fins de aproveitamento de créditos, como a contida no artigo 177, que em seu parágrafo único a Receita distingue 1) os bens e serviços adquiridos para se viabilizar as atividades da mão de obra em virtude de norma legal ou infralegal dos 2) cuja exigência decorrem de celebração de acordos ou convenções coletivas de trabalho.

Adicionalmente, o inciso VI, §2º de seu artigo 176 excluí do conceito de insumo, entre outras hipóteses, as despesas com a alimentação destinadas a viabilizar a mão de obra empregada na atividade produtiva da pessoa jurídica, precisamente porque não haveria a necessária imposição legal para qualificá-las como insumo, ainda que porventura decorram da celebração de acordos ou convenções coletivas de trabalho.

Contudo, nos parece que para se atestar a compatibilidade de ambas as regras com as demais, é necessário ao menos ponderar: 1) qual o conteúdo e alcance da “imposição legal”, exigida para qualificar a aquisição de bens ou serviços como insumo; 2) quais os efeitos no ordenamento dos acordos e das convenções coletivas de trabalho; e, finalmente, 3) qual era a interpretação predominante até então acerca do direito a apropriação de créditos dessas contribuições sobre as despesas com alimentação da mão de obra.

Sem qualquer pretensão de exaurir todas as discussões e particularidades que envolvem a matéria, passemos as reflexões.

Do conteúdo e alcance da imposição legal

Como sabido, diante do forte embate jurídico entre os contribuintes e o Fisco, o critério da “imposição legal”, derivado do critério maior da relevância, foi originalmente concebido pelo STJ, no julgamento do REsp nº 1.221.170, submetido ao regime dos recursos repetitivos, no qual a Corte foi instada a definir o conceito de insumo, citado no artigo 3º, inciso II, das Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003.

O voto condutor não se ocupou de definir ou mesmo descrever melhor o critério da imposição legal, restringindo-se a sugerir, pelo contexto em que se insere, que compreende a aquisição de bens ou serviços “cuja finalidade, embora não indispensável à elaboração do próprio produto ou à prestação do serviço, integre o processo de produção”.

Aliás, nas breves palavras dedicadas à questão, é citado como exemplo apenas um bem que no entender dos ministros cumpre o critério da imposição legal, qual seja: o equipamento de proteção individual (EPI), sem tampouco explicitar com detalhes os motivos que os levaram a crer nisso, além da óbvia associação a obrigatoriedade prescrita em lei de sua aquisição.

Remetendo ao voto da ministra Regina Helena, o critério da imposição legal é citado mais uma vez no aditamento ao voto do ministro Mauro Campbell Marques, que busca justificá-lo sob argumento de que “se a empresa não adquirir determinados insumos, incidirá em infração à lei”, novamente associando o critério à obrigatoriedade daquele comportamento.

De ambos os votos em que é explicitamente citado o critério da “imposição legal”, se denota que o que realmente importava naquela ocasião era a obrigatoriedade daquele comportamento, e não o restrito emprego de lei ordinária para o impor, levando-nos a crer que os vocábulos “legal” e “lei” são meramente incidentais e não essenciais como as autoridades fiscais convenientemente entendem.

Como não poderia deixar de ser, os conceitos definidos pelo STJ foram incorporados pela Receita, por meio do Parecer Normativo (PN) Cosit nº 5/2018, e, na sequência, por meio da IN nº 1.911/2019, revogada recentemente pela IN nº 2.121/2022.

São indícios que confirmam essa interpretação 1) o emprego pelas próprias autoridades fiscais do vocábulo “legislação”, em detrimento de lei em sentido estrito, no PN, que inclusive foi lavrado com o declarado objetivo de internalizar os critérios estabelecidos pelo STJ; assim como 2) a qualificação como insumo no próprio caput do artigo 177 da IN nº 2.121/2022 dos bens ou serviços exigidos por normal legal, assim como por norma infralegal, sem distingui-los.

Com efeito, quando é eleito um critério de discriminação, o legislador não pode aplicá-lo ou deixar de aplicá-lo ao seu alvedrio, sendo-lhe defeso medir com duas medidas, ou melhor, se desviar dos critérios de discriminação empregados anteriormente, pela coerência necessária e derivada do princípio da isonomia.

Assim, como já se desvelou que o critério por detrás da imposição legal é realmente a obrigatoriedade da conduta, e não o emprego de lei em sentido estrito, a Receita não pode, agora, discriminar as obrigações impostas por normas legais ou infralegais daquelas impostas por acordos ou convenções coletivas de trabalho.

Outrossim, agora sim devido à hierarquia entre as normas, também é terminantemente defeso que um ato normativo se descuide de sua finalidade precípua, que como é cediço se restringe somente a regulamentar o disposto em lei ordinária, devendo se ater então ao conteúdo e alcance de suas regras e não inaugurar as suas próprias, em obediência ao princípio da legalidade.

In casu, a ofensa a legalidade é evidente, sobretudo quando se majoram as contribuições pela restrição imposta à apropriação de créditos das contribuições sobre a aquisição de bens e serviços que decorrem de celebração de acordos ou convenções coletivas de trabalho, inaugurando com isso regra absolutamente estranha à lei ordinária.

Dos efeitos dos acordos e das convenções coletivas de trabalho

Com a reforma trabalhista, uma série de mudanças foram inauguradas pela Lei nº 13.467/2017, com o declarado desiderato de nivelar a hierarquia existente entre as normas contidas em lei ordinárias e outras que, embora igualmente abrangentes e relevantes, não ostentavam até então igual prestígio.

Era esse precisamente o caso dos acordos e das convenções coletivas de trabalho, que ganharam novo fôlego com o artigo 611-A do Decreto-Lei nº 5.452/1943 (CLT), agora sendo-lhes atribuída prevalência sobre as leis ordinárias, isto é, passando então a se sobrepor às leis quando seus ditames forem com elas inconciliáveis, desde que é claro não verse sobre objeto ilícito.

Sobre a questão a doutrina concorda que, sob uma ótica material, os acordos e as convenções coletivas de trabalho se equiparam à lei, ao contrário do caráter contratual que era de se supor, que na realidade é reservado somente àquelas cláusulas que estipulam direitos e obrigações entre sindicatos ou entre o sindicato e a empresa, não maculando as lídimas regras jurídicas impostas por esses.

Para Mauricio Godinho Delgado [1], tanto os acordos coletivos de trabalho, como as convenções coletivas trazem consigo regras jurídicas típicas, igualmente gerais, apesar de terem alcance mais restrito, e abstratas, dirigidas à regulação das relações de emprego não de somente um indivíduo, mas de todas as que cheguem os seus efeitos, passando ao largo da facultatividade inerente ao que se tem, usualmente, em um contrato particular.

Em que pese sua equiparação à lei tenha sido criticada, em 2022 o STF encerrou a controvérsia no julgamento do RE com Agravo (ARE) nº 1.121.633, submetido ao regime da repercussão geral, no qual foi reputada plenamente constitucional a prevalência dos acordos e das convenções coletivas de trabalho sobre a lei, desde que não afaste direitos trabalhistas previstos na Constituição.

Pois bem. Tendo-se em vista que os acordos e as convenções coletivas de trabalho ostentam igual senão maior aptidão do que as leis em sentido estrito de normatizar as relações de emprego, inclusive sendo preferidas àquelas sob um viés hierárquico, que dita as relações entre as normas, não resta uma única justificativa para segregá-las das leis ordinárias.

Com isso, mesmo para aqueles que se apegam à necessidade de lei ordinária para a qualificação de bens ou serviços como insumo na apuração dessas contribuições sociais, tampouco se poderia discernir as leis ordinárias dos acordos e das convenções coletivas de trabalho.

A medida em que produzem os mesmos efeitos, a predileção de umas em detrimento das outras não encontraria um justo critério que pudesse conciliar a sua discriminação com as finalidades e valores mais caros à Constituição, novamente por isso mesmo incorrendo em ofensa ao princípio da isonomia, embora por outra via. Isso sem dizer nas considerações que já traçamos sobre a legalidade.

Muito embora não se olvide que os acordos e convenções coletivas de trabalho versem também sobre muitas outras despesas da pessoa jurídica com seus empregados, aqui no atemos somente a análise dos dispêndios com alimentação, usufruído pelo empregado no intervalo intrajornada, portanto, para que ele preste o seu serviço.

Da interpretação sobre a alimentação da mão de obra

Nos últimos tempos, talvez a manifestação mais instrutiva que as autoridades fiscais prestaram sobre o assunto realmente seja a Solução de Consulta Cosit nº 45/2020, que versa sobre o direito a apropriação de créditos 1) pelos gastos com o transporte de empregados de suas residências até o trabalho; e 2) pelas despesas com a sua alimentação.

Nessa ocasião, a Receita reputou entre outros argumentos que as despesas com a alimentação da mão de obra não dão direito a apropriação de créditos porque 1) não constituem uma obrigação, mas mera faculdade do empregador; e 2) tampouco uma imposição legal para que fossem qualificadas como insumo, sem enfrentar a hipótese em que decorrem da celebração de acordos e convenções coletivas de trabalho.

Essa manifestação é particularmente relevante porque foi a única emitida pelo Fisco após o julgamento do REsp nº 1.221.170.

O Carf, por seu turno, em seus recentes precedentes ignora por completo que as despesas com a alimentação decorrem de acordos e convenções coletivas de trabalho, se restringindo a outros argumentos para rejeitar o direito a apropriação de créditos dessas contribuições, como se denota dos Acórdãos nº 3201-008.746 (publ. em ago/2021), 3301-010.187 (publ. em jul/2021), 3401-008.851 (publ. em abr/2021), 3301-009.153 (publ. em abr/2021) e 3301-007.117 (publ. em 12/2019).

Referidas decisões, todavia, tampouco analisam a questão com a devida profundidade, na medida em que o Carf basicamente se ateve ao fato de que não se trataria de dispêndio essencial ou relevante ao processo produtivo. Por essa razão o legislador ordinário teria admitido o creditamento dessa despesa apenas às empresas que explorem as atividades de prestação de serviços de limpeza, conservação e manutenção (artigo 3º, inciso X, das Lei nºs 10.637/02 e 10.833/03) sem enfrentar a questão da imposição legal oriunda de negociações coletivas. Em alguns precedentes o Carf também chega a citar a proibição ao crédito sobre o valor da mão de obra paga as pessoas físicas.

Em outros, embora o resultado tenha sido o mesmo, o Conselho lança mão de outros argumentos, afastando a qualificação das despesas com a alimentação da mão de obra do conceito de insumo porque, ao seu ver, são meras despesas gerais ou administrativas, que não se relacionam, portanto, com a produção de bens ou de prestação de serviços, conforme se infere dos Acórdãos nº 3301-010.188 (publ. em set/2021), nº 9303-010.531 (publ. em set/2020) e nº 3003-001.184 (publ. em ago/2020).

Somente em um precedente o Conselho se debruçou sobre a necessidade de imposição legal para qualificá-las como insumo, embora na ocasião tenha concluído que não decorrem de “exigências legais ou regulamentares”, novamente rejeitando o direito a apropriação de créditos, sem adentrar na hipótese em que decorrem de acordos e convenções coletivas de trabalho (Acórdão nº 3302-009.389, publ. dez/2020).

No judiciário as despesas com a alimentação da mão de obra tampouco ostentaram melhor sorte, sendo excluída sua qualificação como insumo entre um bolo de muitas outras despesas, tais como vale-transporte e uniformes, sob a alegação genérica de que não são essenciais ou relevantes ao desempenho da atividade econômica, como se denota do AgInt no REsp nº 1.960.370 (publicado em mai/2022) e do AgRg no REsp nº 1.281.990 (publ. em ago/2014).

Percebemos que, na ampla maioria dos casos as despesas com a alimentação da mão de obra não receberam cuidado digno de nota das autoridades e julgadores, pondo em dúvida a solidez da jurisprudência acerca da matéria.

Foi por essa superficialidade dedicada a matéria que, até o momento, sequer foi considerado que as despesas com a alimentação em boa parte decorrem da celebração de acordos ou convenções coletivas de trabalho, então perfeitamente cumprindo o critério da imposição legal e assim qualificando-as como insumo, desde que as despesas incorridas sejam pagas a pessoa jurídica, entre outros requisitos legais

Conclusão

Assim, a despeito da regra inaugurada pela IN nº 2.121/2022, especialmente em seu artigo 177, parágrafo único, é plenamente possível sustentar que a celebração de acordos ou convenções coletivas de trabalho cumprem com o critério da imposição legal necessário para sua qualificação como insumo.

Aliás, no próprio caput do artigo 177 da IN nº 2.121/2022, espanta que a RFB admite em pé de igualdade com uma lei em sentido estrito também uma norma infralegal.

Por isso, tampouco prospera o disposto no artigo 176, inciso VI, §2º, da mesma IN, que excluí do conceito de insumo, entre outras coisas, as despesas com a alimentação da mão de obra empregada no processo de produção de bens ou de prestação de serviços, incorrendo com isso em ofensa à isonomia e a legalidade.

Isso porque, como vimos, 1) o critério por detrás da imposição legal é realmente a obrigatoriedade da conduta, e não o restrito emprego de lei ordinária; 2) ainda que assim não fosse, os acordos ou convenções coletivas de trabalho inauguram regras jurídicas igualmente gerais e abstratas, passando ao largo da facultatividade inerente aos contratos particulares; e 3) ainda por cima prevalecem sobre as leis quando forem com elas inconciliáveis.

Por essa argumentação, é possível se insurgir contra a atual jurisprudência administrativa e judicial, que como já se viu é absolutamente silente acerca da matéria. Essa é uma questão de deverá ser amadurecida e enfrentada pelos Tribunais.

Fato é que essa não é a primeira vez que o Fisco Federal decide legislar sobre o regime não cumulativo do PIS/Cofins, sendo que seus excessos devem ser desconsiderados por levarem a uma interpretação ilegal da legislação tributária, até mesmo do STJ.


[1] Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores — 18. ed. — São Paulo: LTr, 2019; p. 1651-1653.

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Por Claudia Abrosio, advogada tributarista no escritório Ayres Ribeiro Advogados, mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet);

Aleksandros Markopoulou, advogado tributarista no escritório Ayres Ribeiro Advogados, professor assistente e especialista em Direito Tributário na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) com MBA em Gestão Tributária pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi).

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