Opinião: Mais um capítulo da novela sobre transferências de mercadoria – a LC 204

Já é tradição no Brasil a publicação de medidas tributárias no fim do ano. Este ano de 2023 não foi uma exceção. Claro que tivemos coisas boas, já que, felizmente, foi promulgada uma importante reforma da tributação sobre o consumo.

Nesse contexto, em 28/12/2023 foi publicada a IN RFB 2.168, com a regulação da autorregularização de débitos federais, e a MP 1.202/2023, que revoga benefícios da lei do Perse.

Na mesma data, e é o que nos interessa neste momento, foi publicada a Lei Complementar nº 204/2023 para, em obediência ao entendimento do STF firmado na infeliz ACD 49, vedar a incidência do ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.

Quando esse entendimento restou consolidado no STF, no sentido de que não há incidência, a dúvida era a necessidade de estorno dos créditos pelo remetente. Nos embargos de declaração opostos na ADC 49, o STF disse que essa não incidência não é aquela prevista no artigo 155, § 2º, II, da Constituição da República, o que autoriza a manutenção do “direito de creditamento do contribuinte”.

Veja, obviamente, o STF se referiu ao direito à manutenção do creditamento na perspectiva do estabelecimento remetente, isto é, sobre os créditos decorrentes das operações anteriores, pois, por mais que a transferência seja uma “não incidência”, não estará obrigado a estornar o crédito.

Ainda nos embargos de declaração, o STF disse que se os estados não disciplinarem a transferência de créditos de ICMS para o estabelecimento de destino, essa transferência estaria autorizada para os sujeitos passivos.

Neste sentido, se não há incidência na transferência entre estabelecimentos, e o contribuinte remetente pode manter os créditos das compras, o significado de “fica reconhecido o direito dos sujeitos passivos de transferirem os créditos” ao estabelecimento de destino só pode estar relacionado com os créditos das operações anteriores, não tem outro, já que não tem incidência na transferência de mercadorias entre estabelecimentos.

Assim, qualquer medida que pretenda o destaque do ICMS em uma transferência interestadual, como se fosse uma operação tributada, é totalmente descabida, a exemplo do que faz o Convênio ICMS 178/2023.

No PLP 116, que deu origem à recém-publicada LC 204/2023, pretendia-se incluir um § 5º ao artigo 12 da LC 87/1996, definindo que poderia haver uma incidência fictícia na transferência de mercadorias entre estabelecimentos, para que, com isso, houvesse um débito na operação, com um correspondente crédito ao estabelecimento de destino. E deveria ser justamente por esse aspecto que o esse § 5º poderia ser vetado, já que seria um curioso caso de hipótese de incidência facultativa.

E mais, nem haveria base de cálculo para tanto, na medida em que o § 4º do artigo 13 da LC 87/1996, que trazia critérios para a base de cálculo nos casos de transferências de mercadorias entre estabelecimentos, foi julgado inconstitucional pela ADC 49.

O mais curioso é o Convênio 178/2023 utilizar esses mesmos critérios, porém, agora, sem base em Lei Complementar. Neste ponto, então, esse convênio também é inconstitucional, por invadir a atribuição da lei complementar de definir base de cálculo dos impostos.

Uma solução pode ser utilizar o próprio artigo 15 da LC 87/1996, inclusive seu § 2º, que trata de uma base de cálculo de 75% do preço de venda no varejo, mas esse dispositivo utiliza termos como “venda”, ou remete aos critérios do artigo 13, I a VIII, hipóteses que apenas são compatíveis com uma operação sujeita ao imposto.

No entanto, o § 5º foi, sim, vetado, mas o veto não veio neste sentido. Verifica-se que a motivação se deu por uma suposta dificuldade de fiscalização e por abrir margem a elisão ou, até mesmo, evasão fiscal. Justificaria estranha e sem coerência, porque o parágrafo vetado pretendia sistematizar a transferência do crédito por uma incidência fictícia do ICMS na transferência de mercadoria entre estabelecimentos, implementando uma sistemática idêntica à existente antes da confusão causada pelo STF quando da irrefletida decisão proferida na ADC 49.

O STF decidiu o assunto, firmou o entendimento, e devemos obediência a isso. Pois bem, a LC 204/2023 então introduz o § 4º ao artigo 12 da LC 87/1996 e, coerentemente com o entendimento firmado na ADC 49, estabelece que a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do contribuinte não é considerada fato gerador do ICMS, determinando, ainda, que a unidade federada de destino deve reconhecer a transferência de crédito a ser realizada pelo contribuinte.

Qual crédito? Novamente, somente podem ser os créditos relativos às operações anteriores à transferência entre estabelecimento do mesmo contribuinte, e neste sentido, o § 4º é totalmente coerente com essa premissa.

O dispositivo permite então a transferência do crédito, mas coloca um limite no crédito a ser transferido. Esse limite está no inciso I do novo § 4º, e corresponde à alíquota interestadual, que pode ser de 4%, 7% ou 12%, a depender do caso. E seguindo a coerência, o inciso II obriga o estado de origem a reconhecer o excesso de crédito no estabelecimento de origem, caso os créditos das operações anteriores superem o limite imposto no inciso I.

O problema que surge nesse momento é a parte final do inciso I. Estaria tudo certo se a redação do dispositivo terminasse no ponto em que trata do limite da transferência do crédito, guiado pelas alíquotas interestaduais. Mas o legislador foi além e terminou a frase dizendo que esse limite será aplicado sobre “o valor atribuído à operação de transferência realizada”.

Veja, se o próprio § 4º diz expressamente que a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte não se considera fato gerador do ICMS, qual o sentido de se ter um “valor” “atribuído” à “operação”? Nenhum sentido.

Não há operação, não há valor. Bastaria transferir os créditos da entrada vinculados com a mercadoria transferida.

E mais, se não há fato gerador, o contribuinte transfere os créditos acumulados em suas entradas apenas se quiser transferir. E foi exatamente isso que o STF, na ADC 49, assegurou ao contribuinte, ao afirmar que o contribuinte possui o direito de transferir o crédito, e é exatamente que parece querer conferir o § 4º introduzido no artigo 12 da LC 87/1996 pela nova LC 204/2023 ao dizer que a transferência de mercadorias não é fato gerador do imposto.

Neste sentido, se é um direito do contribuinte transferir o crédito, ele transfere quando quiser e o quanto quiser? Seria esse o sentido de se ter colocado que o limite de crédito a ser transferido é aplicado sobre o valor “atribuído” à operação, no sentido de que é o contribuinte quem atribui o valor para transferir o crédito?

Muitas perguntas, poucas respostas.

Vamos imaginar um cenário simples (e já imaginamos muitos outros cenários, inclusive em casos de incentivo e de acúmulos de créditos): se o remetente adquire uma mercadoria por R$ 100 e, por isso, escritura um crédito de R$ 18, ao transferir uma mercadoria para um outro estabelecimento localizado em outro estado, poderá transferir o crédito (que seria de 18), mas limitado à alíquota interestadual. Mas o incoerente é que esse limite não é aplicado sobre o crédito a ser transferido, mas, sim, sobre o “valor atribuído à operação”. Imaginando que a alíquota interestadual do caso seja de 12%, o contribuinte pode atribuir o valor de R$ 200 à operação e, com isso, transferir um crédito de R$ 24? Seria possível criar R$ 6 de crédito?

O limite, portanto, deveria ser aplicado sobre o crédito e não sobre o valor da operação. A dicção legal abre margem para essa interpretação de que o contribuinte é quem atribui o valor e, com isso, controla o crédito a ser transferido.

É certo que o dispositivo também abre margem para dizer que o “valor atribuído” será definido por lei ordinária de cada unidade federada.

Novamente, é preciso lembrar, não é uma operação considerada fato gerador do ICMS e nem há base de cálculo definida em lei complementar para guiar o valor atribuído à operação.

Assim, o fundamento do veto para o § 5º parece ser mais coerente se aplicado ao § 4º, mas este último não foi vetado e terá plena vigência.

Parece haver aqui uma boa margem para um “pequeno” caos. Não sabemos como será o tratamento a ser dado pelo Fisco ou pelas leis locais. A única certeza que temos é que o Brasil não é para amadores.

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Por Salvador Cândido Brandão Junior, sócio do escritório Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados e professor de Direito Tributário na FGV-SP e do IBDT.

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