Em breve será julgado na 1ª Turma do STJ o ARESP nº 1.821.549/SP [1], que tem por objetivo decidir se no auto de infração a fiscalização deve ou não considerar o saldo credor do ICMS havido pelo contribuinte. O acórdão recorrido, oriundo do TJ/SP [2], entendeu inexistir este dever. Outrossim, afirmou que a utilização do saldo credor seria faculdade do contribuinte ao efetuar o lançamento por homologação, cabendo ao fisco apenas sua “conferência”.
Com o devido respeito, este argumento não se sustenta.
A uma razão, porque o artigo 142 do CTN não contempla faculdade de o fisco aplicar ou não a regra da não cumulatividade prevista na CF/1988, assim como na LCF n 87/96. Tampouco apenas “conferir” se está correto ou não o lançamento do contribuinte.
O fisco cumpre um e somente um dever: aplicar a lei e, se desta aplicação, resultar algo cobrável, que se faça a devida exigência mediante o devido processo legal. O dever é uno: aplicar a lei! Inexiste faculdade para tanto. É dever!
Neste sentido, o inciso III do artigo 24 da LCF nº 87/1996 prevê que o saldo credor de um período será transportado para o período seguinte. Não se tem neste dispositivo que o valor deste saldo será transferido para o período subsequente unicamente pelo contribuinte. A prescrição é clara: destina-se a qualquer operador da regra da não cumulatividade; seja o fisco, seja o contribuinte, portanto.
A duas, antes da própria extinção do saldo devedor mediante pagamento em dinheiro (inciso I, artigo 156, CTN c/c inciso II, artigo 24, LCF nº 87/96), os débitos de ICMS liquidam-se por compensação a ser feita com créditos do mês de regência, somados ao saldo credor do período anterior (inciso I, artigo 24, LCF nº 87/96). E, novamente, não se constata nestes mandamentos qualquer distinção sobre quais operadores da não cumulatividade deverão efetuar tal compensação, o que impõe concluir que tanto o fisco, quanto o contribuinte estão obrigados a fazê-la.
A três, a própria 1ª Turma do STJ, ao julgar o Resp nº 773.675/SP e o AgRg no Resp nº 1.065.234/RS, já deu os contornos necessários da norma da não cumulatividade, afastando do seu perfil qualquer critério facultativo para a sua aplicação, quer seja pelo contribuinte, quer pelo fisco. É, nas letras do respectivo acórdão, direito cogente a ser obrigatoriamente observado por quem a ela se sujeita; e esta sujeição atinge tanto o contribuinte, quanto o fisco.
A quatro, a doutrina de escol, já de há muito, tem posicionamento assente no sentido destes julgados, como se verifica das lições de Paulo de Barros Carvalho [3]:
“O primado da não-cumulatividade é uma determinação constitucional que deve ser cumprida, assim por aqueles que dela se beneficiam, como pelos próprios agentes da Administração Pública. E tanto é verdade, que a prática reiterada pela aplicação cotidiana do plexo de normas relativas ao ICM e ao IPI consagra a obrigatoriedade do funcionário, encarregado de apurar a quantia devida pelo ‘contribuinte’, de considerar-lhe os créditos, ainda que contra sua vontade”.
A cinco, pelo prisma constitucional, a orientação do STF está devidamente alinhada a esta posição do STJ e da melhor doutrina nacional. Isto, aliás, há décadas, conforme se verifica do entendimento da 2ª Turma ao julgar o REX nº 111.757/SP, cujo seguinte trecho do voto condutor do acórdão vale transcrever:
“(…)
5. Conforme os precedentes desta Corte, ‘não disse o constituinte que se abateria o montante pago, mas, imperativamente, o valor cobrado ou exigível nas operações anteriores. Não se trata de mera preferência gratuita por uma expressão ou outra, mas conseqüência necessária do antecedente — ‘não será cumulativa’. Os sucessivos contribuintes devem, para efeito de calcular o imposto devido pela operação de saída da mercadoria do seu estabelecimento, abater o que antes e, a título idêntico, dever-se-ia ter pago, a fim de evitar a oneração em cascata, ou cumulativa, da coisa tributada’. E prosseguiu o relator desse julgado: ‘(…) O creditamento não é faculdade do contribuinte, mas dever para com a ordem jurídica objetiva, tanto que não lhe é possível renunciar ao lançamento do crédito do imposto, ainda quando isto lhe fosse conveniente. Nem a lei poderia autorizá-la a tanto, sob pena de inconstitucionalidade. (…) Não pode, pois, a Fazenda do Estado de São Paulo (…) impedir que a recorrente lance a seu crédito o montante que está sendo cobrado pela operação anterior. Glosar o crédito que não corresponda ao efetivamente exigível, sim. Mas este não é o caso”.
Esta orientação foi, inclusive, reafirmada pela 1ª Turma da Suprema Corte quando do julgamento do AgRg REX nº 239.632-1/RS.
Portanto, o que se espera do julgamento que se avizinha é que a regra da não cumulatividade seja aplicada tal qual esta moldura, impondo ao fisco o invariável dever de considerar os respectivos saldos credores do ICMS quando efetuar o lançamento tributário.
[1] O recurso está com pedido de vista da Exma. Ministra Regina Helena Costa realizado em 01/05/2023, conforme noticia a página do STJ em consulta feita em 05/06/2023, às 20:02h. https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202100108950&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea
[2] Apelação nº 1050134-25.2018.8.26.0053 – SP, julgado em 20/02/2020 pela 8ª Câmara de Direito Público.
[3] Regra Matriz do ICM, obra inédita, 1981. https://tede2.pucsp.br/handle/handle/8025. Consulta em 06/05/2023, às 19:08h. Este posicionamento doutrinário, aliás, foi expressamente incorporado à sentença proferida pela 1ª Vara da Comarca de Pirassununga, Estado de São Paulo, nos autos do Processo nº 0002639-56.2015.8.26.0457.
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Por Pedro Guilherme Accorsi Lunardelli, advogado, mestre e doutor pela PUC/SP. Sócio titular da Advocacia Lunardelli. Coordenador do Comitê Tributário do CESA/SP e presidente do Comitê de Sociedade de Advogados da ABAT.
Revista Consultor Jurídico