Em continuidade ao texto publicado nesta coluna no qual apontamos as tendências do contencioso tributário a partir da análise das proposições normativas contidas nos projetos de leis elaborados pela Comissão de Juristas, no presente artigo abordaremos como recebe tratamento a questão da responsabilização de terceiros, comparando suas proposições ao Projeto de Lei 1.599/2022 da Câmara dos Deputados, de autoria do NEF/FGV/Direito/SP que trata da cobrança da dívida ativa da Fazenda e, ainda, ao Projeto de Lei Complementar (PLP) 17/2022, do deputado federal Felipe Rigoni, recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados, instituindo o código de defesa do contribuinte.
Trataremos aqui de hipótese em que não houve a constituição do crédito tributário em face de terceiro, tampouco esse terceiro consta da CDA ou integra o polo passivo da execução fiscal primitivamente, porém é ele convocado para adimplir o crédito tributário exigido de modo original em face do devedor-contribuinte (executado).
Quando a Fazenda Pública pretende que o terceiro arque com a dívida tributária, via de regra, utiliza o artigo 135, III do CTN para responsabilizar o terceiro — “sócio-gerente” ou “pessoa com poder de administração” — a fim de integrá-lo ao polo passivo da execução fiscal porque agiu com ilicitude na gestão da pessoa jurídica.
Sem ingressar nos diversos fundamentos que poderão ser invocados pelo Fisco, é importante reter que se trata de responsabilidade tributária fundada nas regras do CTN, cuja causa geradora é um ato ilícito [1].
Se na situação dantes referida a intenção é atribuir a condição de sujeito passivo da obrigação tributária, portanto, de devedor na execução fiscal, há cenário em que a Fazenda Pública pretenderá alcançar tão somente o patrimônio daquele terceiro enquanto sujeito integrante do mesmo grupo econômico (“grupo de fato”, por exemplo), hipótese em que a causa geradora é a ocorrência de atos ilícitos, mas cujo fundamento articulado é o artigo 50 do Código Civil.
Nessa situação, apenas seus bens submeter-se-ão ao processo expropriatório. São dois os requisitos materiais [2] para tanto: (1) desvio de finalidade, quando a pessoa jurídica utiliza da empresa para prejudicar terceiros/atingir objetivos distantes de seu objeto social, e (2) confusão patrimonial, verificável quando há “impossibilidade de fixação dos limites divisores dos patrimônios das pessoas jurídicas envolvidas, seus sócios e acionistas”.
Vê-se que a distinção não é meramente teórica a respeito deste ou daquele enquadramento jurídico, mas vai além: os efeitos práticos sustentam a distinção. Na responsabilidade tributária, o modo de integrar o terceiro é o redirecionamento da execução fiscal para trazê-lo ao polo passivo.
Assim, as restrições impostas a ele terceiro serão as mesmas que irão atingir o devedor originário como, por exemplo, a impossibilidade de obter certidão de regularidade fiscal. Aqui o terceiro assume a condição de parte, verdadeiro devedor do processo executivo fiscal.
Tratando-se de responsabilização patrimonial, o terceiro não é convocado para integrar a execução fiscal na condição jurídica de devedor, mas tão somente terá comprometido seu patrimônio para o pagamento do crédito tributário exigido.
Para esse caso, o artigo 790, VII [3] do CPC prescreve instrumento processual por meio do qual o patrimônio do terceiro será afetado para pagamento da dívida do efetivo devedor-executado: pela via incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ), veículo para apuração dos atos ilícitos que justifiquem a tomada do patrimônio para pagamento de dívida de terceiro, assegurando irremediavelmente o contraditório e a ampla defesa.
Esses apontamentos eram essenciais para que pudéssemos analisar os projetos de leis de processo tributário que tratam dessa temática. Passemos a eles.
Pois bem.
O PL 2.488/2022 referente à lei de execução fiscal, elaborado pela Comissão de Juristas, em seu artigo 39 [4] autoriza o redirecionamento e a responsabilização patrimonial com fundamento no art. 50 do Código Civil, mas afasta a necessidade de utilização do incidente de desconsideração para ambas as hipóteses (o § 5º [5] daquele dispositivo determina a inaplicabilidade à execução fiscal dos arts. 133 a 137 do CPC).
Previsão essa que caminha na contramão do que projetou o CPC quando instituiu o IDPJ, que foi a de assegurar em sua máxima potência o direito ao contraditório e à ampla defesa especialmente daqueles sujeitos que não compõem a relação material geradora do conflito e são convocados para responder com seus bens pela dívida.
Diferentemente estabelece o Projeto de Lei 1.599/2022, de autoria do NEF/FGV/Direito/SP que, em seu artigo 10, expressamente determina que a apuração de “responsabilidade patrimonial de terceiros que não se ajustem às hipóteses de legitimidade passiva definidas nesta lei” deve se dar em incidente autônomo, nos termos dos artigos 133 a 136 do CPC.
Mesmo caminho do Projeto de Lei 1.599/2022 (do NEF/FGV/Direito/SP) segue o projeto de lei complementar (PLP 17/2022) do Código de Defesa dos Contribuintes, de autoria do deputado federal Felipe Rigoni, recém aprovado na Câmara dos Deputados (sessão de 8/11/2022), o qual assegura o incidente de desconsideração da personalidade jurídica como veículo para identificação de grupo econômico e responsabilização patrimonial pela dívida de terceiro.
Não podemos perder de vista que os enunciados normativos assinalados neste texto foram projetados para o ambiente jurisdicional (em que há execução fiscal ajuizada), no entanto, o projeto de lei de execução fiscal 2.488/2022, elaborado pela Comissão de Juristas, traz um capítulo específico intitulado “Da cobrança extrajudicial da dívida ativa” e seu artigo 18 [6] propõe o estabelecimento de instrumento administrativo para apuração de responsabilidade de terceiro, tanto a tributária, como a patrimonial, por débito inscrito em dívida ativa (ajuizado ou não), na hipótese de indícios de ilicitude por parte do contribuinte.
Vê-se, destarte, que, quanto a este específico ponto, referido projeto materializa não só a tendência apontada no texto anterior de “administrativização” [7] da cobrança, mas, também, a do CPC de assegurar ao particular meio processual próprio garantidor do contraditório e da ampla defesa prévio à expropriação de seu patrimônio.
Esse cenário projetado e díspare no tratamento da “forma de apuração” da responsabilidade tributária versus responsabilidade patrimonial de terceiros configura uma oportunidade para a reflexão da comunidade jurídica sobre o tema para que, independentemente da solução a ser implementada normativamente — relembremos: estamos tratando de projetos de lei —, possa derivar de um estágio maduro de debate fomentado a partir do que está posto normativamente no CPC e o que se projeta para uma solução dos conflitos tributários com efetividade.
[1] A reiteração do destaque à ilicitude como causa que gera a atribuição da responsabilidade decorre do fato de que a responsabilidade, tal como posta no artigo 121, II do CTN, pode decorrer também de ato lícito, como são exemplos as hipóteses de responsabilidade por sucessão empresarial ou por interesse comum — artigos 133, I e 124, I.
[2] Conforme lições de Juliana Furtado, Paulo Conrado e Camila Vergueiro, in Responsabilidade tributária. São Paulo: Thomson Reuters RT, 2017, p. 157.
[3] Art. 790. São sujeitos à execução os bens:
VII – do responsável, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica.
[4] Art. 39. A Fazenda Pública exequente poderá requerer o redirecionamento da execução aos responsáveis não incluídos na certidão de dívida ativa, para o reconhecimento da responsabilidade de terceiros, inclusive em decorrência do abuso de personalidade jurídica.
[5] § 5º. Não se aplica à execução fiscal o incidente previsto nos arts. 133 a 137 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
[6] Art. 18. Sem prejuízo da utilização das medidas judiciais para recuperação e acautelamento dos créditos inscritos, se houver indícios da prática de ato ilícito previsto na legislação tributária, civil e empresarial como causa de responsabilidade de terceiros por parte do contribuinte, sócios, administradores, pessoas relacionadas e demais responsáveis, a Fazenda Pública credora poderá, a seu exclusivo critério, instaurar procedimento administrativo para apuração de responsabilidade por débito inscrito em dívida ativa, ajuizado ou não, observadas, no que couber, as normas que regem o processo administrativo no âmbito da Administração Pública correspondente e garantido o direito ao prévio contraditório.
[7] https://tributario.com.br/a/projetos-de-leis-e-as-tendencias-para-o-contencioso-tributario/
Por Fernanda Camano, pós-doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, advogada, professora dos cursos de especialização e extensão em Processo Tributário Analítico do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e pesquisadora do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico (Ibet).
Camila Campos Vergueiro, advogada, doutoranda pela Unimar, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professora do curso de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do programa de pós-graduação lato sensu da Fundação Getúlio Vargas (FGV LAW) e do Complexo Educacional Damásio de Jesus, professora e coordenadora do curso de extensão e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.