Licitação e serviços jurídicos: a inexigibilidade é preferencial?

Por Guilherme Carvalho 

Nada obstante revelar-se, para muitos, uma obviedade, em se tratando de contratações diretas, em maior ou menor grau, pairam zonas de desconforto. Sendo caso de contratação direta por inexigibilidade, o prejulgamento inicia-se antes mesmo da formalização do contrato.

Embora a contratação direta seja um campo fértil de onde emergem os mais variados questionamentos, dúvidas e debates, o presente artigo será limitado à contratação direta, por inexigibilidade, de que trata a alínea “e” do inciso III do artigo 74 da Lei nº 14.133/2021: patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas.

“Art. 74. É inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de:

III – contratação dos seguintes serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação:

e) patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas.”

No corpo da Lei nº 8.666/1993, a redação do artigo 13, V é idêntica à redação da alínea “e” do inciso III do artigo 74 da vigente Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Porém, o texto do inciso III deste mesmo artigo 74 é levemente diverso do encontrado no artigo 25, II, da anterior Lei nº 8.666/1993, considerando, grosso modo, que a expressão “natureza singular” cedeu espaço ao termo “natureza predominantemente intelectual”.

Certo é que, em face da suposta inconstitucionalidade da matéria e das tempestuosas – e múltiplas – interpretações concedidas à temática, as contratações de advogados ou escritórios de advocacia para patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas acomodaram, pelos mais variados fatores, a proposição de inumeráveis ações civis públicas por atos de improbidade administrativa, encontrando, finalmente, a pretendida pacificação em recentíssimo julgamento no Supremo Tribunal Federal.

Resumidamente, avaliando o Recurso Extraordinário (RE) 656.558, o STF decidiu, dentre outros pontos, que ação intencional (dolo) é requisito para configurar improbidade administrativa e que são constitucionais os artigos 13, V, e 25, II, da Lei nº 8.666/1993.

Para o STF (Tema nº 309 com Repercussão Geral), o simples fato de haver contratação de advogados ou escritórios de advocacia por inexigibilidade de licitação não ocasiona, necessariamente, ato de improbidade administrativa, desde que, “além dos critérios já previstos expressamente (necessidade de procedimento administrativo formal; notória especialização profissional; natureza singular do serviço), sejam observados: (1) inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do poder público; e (2) cobrança de preço compatível com a responsabilidade profissional exigida pelo caso, observado, também, o valor médio cobrado pelo escritório de advocacia contratado em situações similares anteriores”.

Nem tanto há o que interrogar sobre a possibilidade (e constitucionalidade) de contratação direta por inexigibilidade de licitação para patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas, sobretudo quando o ente público contratante não possui um adequado órgão de assessoramento jurídico.

Havendo órgão de assessoramento jurídico, notadamente uma Procuradoria composta por servidores efetivos, a inexigibilidade para a contratação de advogados ou escritórios de advocacia é manifestamente residual, sendo mais dificultoso justificar, em ato devidamente motivado, a inadequação da prestação do serviço pelos integrantes de uma advocacia pública estruturada.

Porém, partindo do pressuposto de que inexistem integrantes do poder público adequados para a prestação do serviço, é necessário refletir sobre um pontual questionamento: todo serviço advocatício deve ser interpretado como inexigível? Sobre esta indagação repousam as ideias do presente texto.

Tudo leva a crer que o próprio STF já deu a solução para o impasse, o que conduziria a uma obviedade desnecessária para ser reproduzida em um artigo. Isso porque uma interpretação mais simplória, seguindo a literalidade do posicionamento adotado pelo Tribunal Supremo, possibilita que, salvo as exceções apontadas (inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do poder público; compatibilidade de preço), toda e qualquer contratação de advogado ou escritório de advocacia pode ser inexigível.

Todavia, a questão vai muito além de ser possível ou não a licitação, eis que a autorização jurídica, com expressa declaração de constitucionalidade, já foi apreciada pelo STF. O que se examina no presente texto não é a plausibilidade, mas a vantajosidade da contratação, bem assim o alcance semântico do vocábulo “predominantemente intelectual”.

Não é possível afirmar, com extremado grau de definitividade, que todo patrocínio de causa judicial ou administrativa tem natureza predominantemente intelectual. Logo – e sem precipitação conclusiva –, alguns tipos de serviços advocatícios são rotineiramente comuns, talvez enquadráveis até mesmo como estandardizados, seja pela facilidade de produção de uma determinada peça jurídica, seja pela desnecessidade de um esforço (intelectualmente significativo) para a entrega do trabalho.

Assim que, se se tratar de um serviço que não demande a expertise (predominância intelectual) a que se refere a norma, a modalidade de licitação deve ser alguma outra que não a inexigibilidade de licitação, podendo ser escolhida, exemplificativamente, a modalidade Concorrência, adotando um dos critérios de julgamento previstos nas alíneas do inciso XXXVIII do artigo 6º da Lei nº 14.133/2021.

É ponderável que, quanto maior a simplicidade do serviço advocatício licitado, o Pregão, cujo critério de julgamento é o de menor preço ou de maior desconto (XLI do artigo 6º da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos), pode ser o mais vantajoso, desde que a qualidade do serviço prestado não seja comprometida, imunizando potenciais prejuízos à administração pública. Nestes casos, a fiscalização do contrato administrativo deve ser mais acentuada.

Para demandas complexas, com predominância intelectual, sendo inviável a competição, impõe-se a inexigibilidade de licitação, respeitadas as vicissitudes de cada caso em concreto (matéria igualmente discutida pelo STF e que consta no Tema 309).

Lado outro, por decorrência da autorização do Suprema Corte – que soa muito mais como um apaziguamento quanto ao temor decorrente de uma condenação por ato de improbidade administrativa –, não é conveniente padronizar, como modelo para contratação de serviços prestados por advogados ou sociedade de advogados, a inexigibilidade de licitação.

Reforçando as ressalvas destacadas pelo STF, a naturalidade da prestação de serviços advocatícios na administração pública encontra lugar na advocacia pública (integrantes do poder público adequados para a prestação do serviço), que não coincide com escritório privado de advocacia, tampouco com advogado privado.

É imprescindível não vulgarizar a inexigibilidade para patrocínio de causas judiciais ou administrativas. Nem tudo é predominantemente intelectual.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-dez-06/licitacao-e-servicos-juridicos-a-inexigibilidade-e-preferencial/