O debate jurídico envolvendo o STJ e a revogação antecipada do Perse

O Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) se tornou um dos maiores pontos de controvérsia do direito tributário recente. Criado pela Lei nº 14.148/2021, prometia cinco anos de desoneração fiscal para setores duramente atingidos pela pandemia, mas foi alvo de sucessivas alterações legislativas e administrativas que colocaram em xeque sua efetividade.

Afinal, pode o Estado retirar um benefício concedido por prazo certo antes do fim de sua vigência? E até que ponto exigências acessórias, como o registro no Cadastur, restringem o acesso às vantagens previstas em lei?

A discussão ganhou força em duas frentes. De um lado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu pontos cruciais sobre a obrigatoriedade do Cadastur e a vinculação aos CNAEs previstos. De outro, juristas criticam a tentativa de encerrar o programa antes do prazo legal, apontando violações a garantias constitucionais e à segurança jurídica.

As decisões e análises trazem à tona não apenas uma disputa sobre o alcance do Perse, mas também sobre os limites do poder tributário diante da confiança legítima dos contribuintes.

Essas tensões colocaram em evidência um dilema: como equilibrar a necessidade de ajuste fiscal do Estado com a preservação de promessas normativas que sustentaram decisões empresariais e investimentos durante um período de crise sem precedentes? A resposta pode redefinir a relação entre benefícios tributários e estabilidade jurídica no Brasil.

Segundo Nicolau Abrahão Haddad Neto, Robinson Vieira e Renata Martins Alvares, o julgamento do Tema 1.283 pelo STJ deixou claro que a inscrição prévia no Cadastur constitui requisito essencial para a fruição da alíquota zero sobre IRPJ, CSLL, PIS e COFINS. O colegiado entendeu que apenas empresas registradas entre 18 de março de 2022 e 30 de maio de 2023 poderiam usufruir do incentivo, vinculando o benefício ao cumprimento formal do cadastro.

O acórdão reiterou que a interpretação sobre os CNAEs deve respeitar estritamente a Lei nº 14.148/21, a qual, por sua vez, remete ao rol de atividades turísticas definido na Lei nº 11.771/08.

O reconhecimento de atividades “similares”, como lanchonetes, padarias, bistrôs e casas de suco, revelou uma sinalização clara do STJ para ampliar a proteção ao setor de alimentação e turismo, fortemente impactado pela pandemia.

Outro ponto relevante diz respeito ao limite de R$ 15 bilhões de desoneração fiscal, fixado posteriormente. Condicionar o término do Perse a esse teto afronta diretamente o artigo 178 do Código Tributário Nacional, que veda a revogação de benefícios concedidos por prazo certo e sob condições específicas.

O acórdão do STJ, ao considerar o Cadastur como requisito constitutivo para a fruição do incentivo, traria justamente a natureza vinculada e estável da desoneração, cuja retirada antecipada violaria princípios de segurança jurídica e boa-fé. Na perspectiva apresentada, a experiência do Perse pode reproduzir efeitos positivos semelhantes aos observados na chamada “Tese do Século”, em que a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS, longe de reduzir a arrecadação, induziu crescimento econômico e aumento de receitas.

Já Vitor Laurindo Sivini Angelo afirma que à tentativa de supressão antecipada do Perse pela Lei nº 14.859/2024 e pelo Ato Declaratório RFB nº 2/2025 determinou a extinção do benefício já em abril de 2025, quase dois anos antes do previsto, em clara afronta ao artigo 178 do CTN e à jurisprudência consolidada do STJ, como no REsp nº 1.941.121/PE, relatado pela ministra Regina Helena Costa. Naquele precedente, a Corte reconheceu que a alíquota zero se equipara, em seus efeitos, à isenção, não podendo ser revogada antes do prazo estipulado.

O argumento de que o teto de renúncia fiscal teria sido atingido carece de lastro probatório, já que os números divulgados pela Receita Federal incluíram valores ainda em litígio judicial e não passaram por adequada validação em audiência pública, como exige a legislação.

Além da ofensa ao artigo 178 do CTN,  a revogação antecipada viola também os princípios da anterioridade geral e nonagesimal, conforme fixado pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 1.383 da repercussão geral (RE nº 1.473.645/PA). O STF definiu que a redução ou supressão de benefícios fiscais que resultem em aumento indireto da carga tributária deve observar os prazos de adaptação constitucionalmente previstos.

Ao restabelecer imediatamente a cobrança de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS, a União impôs surpresa fiscal incompatível com a previsibilidade exigida pelo sistema tributário, desorganizando fluxos de caixa e investimentos estruturados na confiança de cinco anos de desoneração. Assim, cabe ao Judiciário garantir a manutenção do Perse até o termo final legal, assegurando o respeito à segurança jurídica e à confiança legítima dos contribuintes.

Nesse diapasão percebemos um ponto de convergência: a instabilidade normativa compromete a credibilidade das políticas tributárias. Tanto no julgamento do STJ quanto nas críticas à revogação antecipada, sobressai a percepção de que o Perse foi estruturado como benefício temporário e condicionado, cuja alteração arbitrária fragiliza a previsibilidade indispensável às relações empresariais. A exigência do Cadastur, embora controversa, foi tratada como requisito claro e delimitado, enquanto a tentativa de supressão antecipada surge como afronta direta a normas constitucionais e legais.

A experiência do Perse vem ilustrando um dilema mais amplo, quer seja, a tensão entre ajustes fiscais de curto prazo e a manutenção de compromissos normativos assumidos pelo Estado. A quebra prematura do programa expôs setores já fragilizados a nova insegurança, ampliando o risco de litígios judiciais e afetando negativamente a confiança em políticas emergenciais de estímulo. Para além da disputa técnica, o caso projeta implicações sobre a coerência do sistema tributário e sobre a relação entre contribuintes e administração pública.

Em síntese, a controvérsia sobre o Perse transcende a discussão sobre turismo e eventos. Ela toca em pilares estruturantes do direito tributário: a estabilidade normativa, a proteção da confiança e os limites constitucionais ao poder de tributar. Ao mesmo tempo em que o STJ reforça a necessidade de requisitos formais como o Cadastur, cresce a resistência contra iniciativas de revogação antecipada que fragilizam garantias históricas como o artigo 178 do CTN e a anterioridade tributária.

 

Fonte: https://tributario.com.br/a/o-debate-juridico-envolvendo-o-stj-e-a-revogacao-antecipada-do-perse/