O regime jurídico das infrações aduaneiras: são todas “farinhas do mesmo saco”?

Por Revista Consultor Jurídico

O processo de identificação de disciplinas jurídicas não tem como finalidade o estabelecimento de uma autonomia ontológica de frações do ordenamento, mas de segregar — sob uma perspectiva didática e científica — um conjunto de normas afeitas à resolução de determinado caso, delimitando o regime jurídico aplicável. Nas palavras de Tércio Sampaio, esse desenvolvimento é meio para o estabelecimento do quadro teórico para o reconhecimento de critérios de decidibilidade de conflitos, de modo coerente e coeso [1].

Na coluna Direto do Carf, muito já se falou sobre os diferentes regimes jurídicos tributários e aduaneiros [2], ambos sujeitos à fiscalização da Receita Federal e ao julgamento do Carf, não obstante tenham regras e princípios que lhe são particulares.

Entretanto, a heterogeneidade (total ou parcial) de regimes não é um contraste que surge apenas entre ramos distintos do Direito, mas também dentro deles próprios, estabelecendo uma camada adicional de complexidade na resolução dos casos. Exemplos disso são a distinção quanto a aplicabilidade do artigo 138 do CTN (denúncia espontânea) ao descumprimento de obrigações principais e acessórias, ou mesmo as mitigações constitucionais à legalidade para o II, IE, IPI e IOF.

Hoje, trataremos sobre a existência de diferentes regimes jurídicos infracionais no âmbito aduaneiro, partindo de uma interessantíssima reflexão do conselheiro Jorge Freire, em seu voto vencedor no acórdão CSRF nº 9303-007.667 [3] que, não obstante a relevância das considerações lá dispostas, não foi objeto de maior atenção da doutrina e jurisprudência administrativa.

O caso envolvia uma interposição fraudulenta de terceiros (artigo 23, V do DL nº 1.455/76), com aplicação de multa equivalente ao valor aduaneiro, no qual interpôs-se Recurso Especial da Fazenda, discutindo a conhecida questão do prazo decadencial para as infrações aduaneiras, se deveria obedecer aos artigos 138 e 139 do DL nº 37/66 ou ao artigo 173, I, do CTN.

A relatora, em seu voto, afirmou que as infrações aduaneiras estariam sujeitas à regra específica do artigo 139 do DL nº 37/66 (“Art.139 — No mesmo prazo do artigo anterior se extingue o direito de impor penalidade, a contar da data da infração.”), negando provimento ao recurso.

O voto vencedor, entretanto, trouxe uma premissa nova à discussão, ao afirmar, verbis: “Como a infração a que alude o art. 23 do DL 1.455/76, não se trata de penalidade inserta no Decreto-lei 37/66, a decadência deve ser regida pelo art. 173, I, do CTN“. Ele também cita como reforço argumentativo trecho do REsp 643.185/SC, de relatoria do Min. Teori Zavaski, que aduz “Nos termos dos artigos 138 e 139 do Decreto-lei nº 37/66, é de cinco anos o prazo decadencial para a imposição das penalidades nele previstas.” [grifos do voto]

Ao final, conclui o i. conselheiro que: “Dessarte, aplicando-se o art. 173, I, do CTN, o qual rege a aplicação das penalidades não insertas no DL 37/66, portanto alcançando a pena de perdimento do DL 1.455/76. Dessa forma, não há que se falar em decadência em relação à exação em testilha”.

A 3ª CSRF decidiu, na ocasião, que o regime jurídico do Decreto-lei nº 37/66 somente seria aplicável às infrações previstas nele próprio, não se aplicando — no caso — à infração de interposição fraudulenta, cuja previsão legal está exclusivamente no artigo 23, V do DL nº 1.455/76, incluída pela Lei nº 10.637/02.

À primeira vista, a premissa adotada causa espécie por destoar da jurisprudência do órgão, que sempre aplicou o DL nº 37/66 à essa infração. Não obstante, melhor refletindo sobre a questão, parece ter razão o conselheiro.

O DL nº 37/66 estabelece o regramento jurídico das infrações que regula a partir do artigo 94, verbis:

Art. 94 — Constitui infração toda ação ou omissão, voluntária ou involuntária, que importe inobservância, por parte da pessoa natural ou jurídica, de norma estabelecida neste Decreto-Lei, no seu regulamento ou em ato administrativo de caráter normativo destinado a completá-los.

  • 1º – O regulamento e demais atos administrativos não poderão estabelecer ou disciplinar obrigação, nem definir infração ou cominar penalidade que estejam autorizadas ou previstas em lei.

O artigo 94 define o termo “infração” como “toda ação ou omissão (…) que importe inobservância (…), de norma estabelecida neste Decreto-Lei, no seu regulamento ou em ato administrativo de caráter normativo destinado a completá-los“. Em outras palavras, esse artigo estabelece uma restrição “topológica” ao delimitar quais diplomas normativos poderão prever “infrações”, para fins do DL nº 37/66.

Inclusive, o §1º, cuja interpretação demanda atenção, reforçou essa restrição, ao estabelecer que o regulamento e demais atos administrativos não poderão estabelecer ou disciplinar obrigação, nem definir infração ou cominar penalidade que estejam autorizadas ou previstas em lei. Proíbe-se expressamente a possibilidade de se utilizar de regulamentos e atos administrativos para ampliar o conjunto de infrações sujeitas ao DL nº 37/66, por meio da mera reprodução de hipóteses de obrigação, infração ou penalidade previstas em outras leis, burlando o escopo restritivo do artigo 94.

Esse dispositivo, apesar de pouco estudado, é importantíssimo para a delimitação do alcance desse regime infracional. Para bem compreendê-lo, entretanto, devemos esclarecer o que são regulamentos e atos administrativos complementares a que ele se refere.

A expedição de regulamentos é uma função normatizadora atípica da administração pública, a quem cabe primordialmente o fiel cumprimento das leis, como forma de evitar que o Parlamento tenha que se ocupar de minúcias técnicas e operacionais relacionadas à execução das leis, dispensando a edição de uma legislação excessivamente complexa e extensa.

O próprio DL nº 37/66 foi um texto legal criado para ser complementado por regulamento, ex vi do seu art. 176, que estabelece a obrigação do Executivo regulamentar suas disposições. Ressalte-se que esses regulamentos têm natureza executiva, como esclarecido na exposição de motivos do DL nº 37/66, verbis: “A exemplo de Códigos Aduaneiros modernos, o projeto dispõe tão somente sôbre matéria de natureza substantiva, deixando-se aos regulamentos tôda a matéria de procedimento, a fim de que se mantenham sempre atuais os métodos e sistemas de trabalho“.

Isso já indica que os regulamentos, em matéria aduaneira, não são instrumentos para a criação de novas infrações ou obrigações. Mormente em matéria infracional, o artigo 34, IV, do DL nº 37/66 dispõe que o regulamento versará apenas sobre “apuração de infrações por descumprimento de medidas de controle estabelecidas pela legislação aduaneira“.

Por fim, os atos administrativos complementares serão atos inferiores aos regulamentos, por parte de órgãos da administração pública envolvidos com a atividade de controle aduaneiro, tais como portarias, instruções normativas e outros, e que se sujeitam a restrições ainda maiores de conteúdo do que os regulamentos executivos.

Assim, tomando-se a regra básica da hermenêutica e que as palavras idênticas utilizadas em um mesmo diploma normativo possuem um mesmo sentido, que ganhou foros de legislação, com o artigo 11, II, “b”, da LC nº 95/98, e considerando que o termo “infração” é definido no próprio texto legal, nos parece seguro concluir que, a priori, sempre que o DL nº 37/66 utilizar a expressão, ele se refere à definição do artigo 94, contemplando o descumprimento de obrigações estabelecidas naquele decreto-lei.

As considerações acima permitem concluir que a despeito da jurisprudência do Carf, da doutrina e da Receita Federal maciçamente acatarem a aplicabilidade direta do DL nº 37/66 à infração de interposição fraudulenta, não parece haver fundamento jurídico no direito material para tanto!

O DL nº 1.455/76, em seus artigos 23 e 24, relaciona diversas infrações já existentes no âmbito do do DL nº 37/66 (nos seus artigos 104 e 105), buscando, com isso, submetê-las a um rito procedimental mais moderno (como explicado em sua exposição de motivos), e não aumentar o alcance do DL nº 37/66, tanto que optou pela técnica de remissão legislativa para definir as infrações.

Caso o legislador pretendesse incluir a infração de interposição fraudulenta no DL nº 37/66, ele poderia ter feito como com a MP nº 38/02 e o artigo 105, XVII, não convertida em lei (mas editada no mesmo exercício em que a Lei nº 10.637/02, que optou por incluir o inciso V no artigo 23, do DL nº 1.455/76, diretamente).

Esse DL nº 1.455/76, ao ser criado, estabeleceu um novo regime jurídico procedimental tratar mercadorias objeto de perdimento pelas infrações do artigo 104 e 105 do DL nº 37/66, e não criou ou ampliou as infrações existentes. Ela não tem, nesse aspecto, caráter de decreto regulamentar ou de ato administrativo complementar, em relação ao DL nº 37/66, pois não dispõe sobre “apuração de infrações por descumprimento de medidas de controle estabelecidas pela legislação aduaneira“.

Mas como, a despeito da clareza das conclusões acima, se normalizou essa aplicação do DL nº 37/66 à infrações externas ao seu texto?

Suspeitamos que a origem desse equívoco reside na edição do Decreto nº 91.030/85, o primeiro Regulamento Aduaneiro, que teve a finalidade de consolidar as normas aduaneiras e regulamentar procedimentalmente o DL nº 37/66 [4].

Nessa consolidação, mais precisamente no seu artigo 499, que consolidou o artigo 94 do DL nº 37/66, o Poder Executivo promoveu uma alteração redacional que, a despeito de parecer trivial, vai futuramente desaguar na problemática ora endereçada:

Art. 499. Constitui infração toda ação ou omissão, voluntária ou involuntária, que importe inobservância, por parte da pessoa natural ou jurídica, de norma estabelecida ou disciplinada neste Regulamento ou em ato administrativo de caráter normativo destinado a completá-lo (Decreto-lei nº 37/66, art. 94).

Fosse o RA/85 um Decreto estritamente regulamentar, isto é, sem inovar no direito material normatizado em seu bojo, a alteração acima não teria o condão de aumentar o alcance do artigo 94 do DL nº 37/66. Entretanto, em razão da sua função consolidadora, ele trouxe para o seu bojo infrações que não constavam originalmente no DL nº 37/66, a exemplo do seu artigo 516, 519 e 520, submetendo-as ao seu regime infracional originalmente delimitado pelo artigo 94, o que evidencia uma alteração do alcance normativo do texto consolidado.

Essa alteração redacional foi mantida nos Regulamentos posteriores (e.g. artigo 602 do RA/2002), e o RA/2002 consolidou em seu bojo, no artigo 618, XXII, a figura da interposição fraudulenta, recém-criada pela MP 66/02, “atraindo” a aplicação das disposições infracionais do DL nº 37/66 a novel infração, que fora inserida em diploma normativo distinto, pelo fato de estar prevista também no regulamento.

Não obstante os méritos da consolidação normativa, a sua característica principal, conforme estabelecido tanto no artigo 13, §§ 1º e 2º, da LC nº 95/98, é a ausência de modificação do alcance dos dispositivos consolidados, preservando-se o seu conteúdo normativo original, mesmo diante de alterações redacionais — o que não se deu no presente caso.

Em razão do que foi dito, parece-nos insofismável a premissa assumida pela 3ª CSRF no acórdão nº 9303-007.667, cujo rigor exige que seja objeto de maiores reflexões no âmbito daquele órgão de julgamento.

Apesar da concordância in totum com a premissa posta, data vênia divergimos o conselheiro Jorge Freire quanto às conclusões do raciocínio. Diante do reconhecimento de uma lacuna de regulamentação da decadência em relação à infração de interposição fraudulenta, recorreu-se, por analogia, ao CTN, cuja aplicabilidade é restrita aos créditos tributários [5]. Não há qualquer regra que determine uma aplicação direta do CTN a créditos não tributários.

Entendemos que houve um equívoco na colmatação dessa lacuna, tendo em vista a existência de uma regra geral para o prazo decadencial (REsp nº 1.115.078/RS, repetitivo) de exercício da ação punitiva da Administração Pública Federal, no exercício do poder de polícia (no presente caso, aduaneira), estabelecida no artigo 1º da Lei nº 9.873/99. Por se tratar de regra geral, em havendo lacuna de uma regulação específica, como no presente caso, dever-se-ia aplicar a sua disposição até que sobrevenha uma regra específica para o caso.

O referido artigo dispõe que o prazo para o exercício da ação punitiva se extingue em cinco anos “contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado“, que deveria ter sido a regra observada na resolução do caso analisado no acórdão nº 9303-007.667.

Eis que nossa análise chega a uma conclusão inusitada:

1) a relatora, em nosso entender, equivoca-se quanto às premissas jurídicas adotadas em seu voto (de resto, alinhadas à jurisprudência do Carf), mas como — por coincidência — os marcos temporais do artigo 139 do DL nº 37/66 e do artigo 1º da Lei nº 9.873/99 são os mesmos, a sua conclusão é correta. Isso não permite, todavia, concluir por uma fungibilidade na aplicação de uma ou de outra regra.

2) por outro lado, o redator designado estabelece uma premissa que demonstramos ser rigorosamente correta, trazendo rico contributo à análise dos regimes infracionais aduaneiros. Entretanto, em nossa opinião, equivoca-se ao colmatar a lacuna de regulação por meio de recurso ao CTN, preterindo a aplicação do artigo 1º da Lei nº 9.873/99, que estabelece regra geral para a decadência da pretensão punitiva da administração pública federal, chegando a uma conclusão questionável, a despeito do ponto de partida apropriado.

Como se vê, os regimes infracionais em matéria aduaneira comportam novas reflexões, frente à premissa adotada pela 3ª CSRF no acórdão analisado, para que se estabeleçam critérios rigorosos de decidibilidade nos ulteriores casos a serem julgados pelo Carf, colocando cada coisa no seu lugar, e não tudo como “farinha do mesmo saco”.

[1] FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação. 6a ed., p.112-113.

[2] Por todos, v. ConJur – Morte e vida da autonomia do regime jurídico aduaneiro, de Diego Diniz Ribeiro.

[3] Redator Desig. Cons. Jorge Freire, j. 21/11/2018.

[4] FERNANDES, Rodrigo Mineiro. Introdução ao Direito Aduaneiro, p. 21; FOLLONI, André Parmo. Tributação sobre o comércio exterior, p.79.

[5] Os créditos tributários serão compostos exclusivamente por: i) tributos decorrentes da ocorrência do fato gerador, conforme definição do art. 3º do CTN; ii) penalidade pecuniária decorrente do não pagamento ou pagamento a menor dos tributos; iii) penalidade pecuniária decorrente do não cumprimento de obrigações acessórias; e iv) juros de mora e correção monetária sobre os créditos mencionados nos três itens anteriores. Todo o restante tem natureza de crédito não tributário.

Por Carlos Augusto Daniel Neto, sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.