Introdução
A Emenda Constitucional nº 132/2023 inaugurou uma nova etapa no sistema tributário brasileiro, instituindo o Imposto Seletivo (IS) como instrumento de política pública voltado à regulação de condutas consideradas nocivas à saúde e ao meio ambiente. A inclusão do inciso VIII ao art. 153 da Constituição Federal conferiu à União competência para instituir, mediante lei complementar, tributo incidente sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais ao bem-estar coletivo.
A Lei Complementar nº 214/2025, que regulamenta o tema, estabeleceu o desenho normativo do IS, definindo produtos e serviços sujeitos à tributação, entre os quais figuram veículos, embarcações, aeronaves, bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas, produtos fumígenos, bens minerais, loterias, fantasy sports e jogos on-line. Trata-se, portanto, de um tributo de natureza formalmente extrafiscal, mas que suscita debate acerca da sua efetiva vocação regulatória e de sua eventual função arrecadatória.
O tema adquire especial relevância no contexto da reforma tributária sobre o consumo, não apenas por coexistir com o novo IVA dual (CBS e IBS), mas também por reintroduzir no ordenamento um modelo de tributação seletiva sobre produtos específicos — à semelhança do antigo IPI —, agora sob novos fundamentos constitucionais e com potenciais impactos econômicos setoriais relevantes.
Contexto
O Imposto Seletivo foi desenhado como um instrumento de indução de comportamento, com o objetivo declarado de desestimular práticas que geram externalidades negativas, como o consumo de cigarros, bebidas alcoólicas, combustíveis fósseis e bebidas açucaradas, ou ainda atividades de impacto ambiental adverso e socialmente controversas, como os jogos on-line.
Contudo, conforme apontam diversos autores analisados, a implementação prática do tributo evidencia dissonâncias entre sua finalidade declarada e sua execução normativa. A ausência de vinculação orçamentária das receitas, a seleção heterogênea dos setores tributados e a possível sobreposição de incidência com o IPI e o IVA dual reforçam o argumento de que o IS tende a exercer função predominantemente arrecadatória, em detrimento de sua pretensa natureza extrafiscal.
Do ponto de vista jurídico, o imposto incide de forma monofásica, sobre o primeiro fornecimento do bem ou serviço, inclusive em operações de importação e extração mineral. Sua base de cálculo é o valor da operação (modelo ad valorem) ou a unidade de produto (modelo ad rem), podendo ambas coexistir conforme a legislação ordinária específica. Há, ainda, previsão de alíquotas progressivas e diferenciadas, especialmente para bebidas alcoólicas e pequenas produções artesanais.
Opiniões
De acordo com Joaquim Alves Rodrigues Pinto e Vanessa Carvalho, o Imposto Seletivo representa uma “nova roupagem a um tributo antigo”, aproximando-se estruturalmente do IPI, porém com escopo restrito a bens e serviços considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Argumentam que, embora o IS possua função extrafiscal declarada, não há vinculação legal da arrecadação às políticas públicas correspondentes, o que esvazia seu caráter indutor.
A análise ressalta que a Lei Complementar nº 214/2025 definiu taxativamente os bens sujeitos à tributação, e que a receita gerada é de natureza ordinária, não destinada a finalidades específicas. Assim, a medida se limita ao aumento do preço de certos produtos, sem garantia de reinvestimento em programas ambientais ou de saúde. O texto conclui que o IS, sob o ponto de vista econômico, é essencialmente um IPI seletivo, de incidência única e foco mais restritivo, cuja extrafiscalidade se traduz apenas em oneração de preço, sem correspondência direta com medidas de compensação social.
De acordo com Laura Vidal Regueiro e Maria Beatriz Gomes de Melo Gardelli, a principal inovação normativa é a possibilidade de combinar alíquotas ad valorem e ad rem, calibrando o preço segundo o valor da operação e a quantidade do produto. Destacam, contudo, lacunas regulatórias que podem gerar insegurança jurídica, como a indefinição do conceito de “pequenos produtores” e a falta de clareza sobre se o rol do Anexo XVII da LC 214/2025 é taxativo ou exemplificativo. Tais incertezas afetam setores como o de bebidas açucaradas, em que produtos com e sem açúcar foram classificados de forma inconsistente. A aplicação prática do IS demandará revisões interpretativas e ajustes infralegais para assegurar coerência e efetividade extrafiscal.
De acordo com Lina Santin, a análise da tributação seletiva sobre bebidas açucaradas evidencia o paradoxo entre o discurso de saúde pública e a realidade fiscal. Argumenta-se que, por força do art. 167, IV, da CF/88, a vinculação da receita de impostos é vedada, impossibilitando destinar os recursos do IS à prevenção da obesidade ou ao financiamento do SUS. Além disso, metade da arrecadação deve ser distribuída entre FPE, FPM e programas de desenvolvimento regional, o que reforça seu caráter arrecadatório.
A autora sustenta que o modelo brasileiro ignora as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2022), que condicionam a efetividade de excise taxes sobre açúcar à integração com políticas de saúde e à análise prévia de elasticidade e impacto social. Ao adotar o imposto sem estudos “ex ante” e sem contemplar produtos substitutos, o legislador teria criado um instrumento de arrecadação simbólica, com eficácia duvidosa na redução do consumo e potencial violação ao princípio da isonomia tributária.
De acordo com Filipe Lessa, o setor aéreo terá impacto direto da nova tributação sobre o transporte internacional de passageiros, estimando aumento médio de 26% no preço dos bilhetes e queda de demanda entre 21% e 29%. A crítica central do autor reside na contrariedade às diretrizes da ICAO e da IATA, que recomendam neutralidade fiscal em operações internacionais, por envolverem múltiplas jurisdições e já suportarem custos expressivos em outros países.
A ausência de isenção do IS para passagens internacionais, rejeitada no Senado durante a tramitação do PL 68/2024, é apontada como incompatível com a prática internacional e com o princípio da reciprocidade tributária, podendo afetar a competitividade do Brasil e desincentivar o turismo. O autor sugere revisão legislativa ou regulamentação infralegal para mitigar o impacto econômico e harmonizar o tributo com os padrões globais do setor aéreo.
De acordo com Guilherme Chambarelli, existe fragilidades conceituais do IS quando aplicado a atividades de natureza digital e comportamental, como jogos on-line e fantasy sports. O autor critica a maleabilidade do conceito de “prejudicialidade”, considerado um conceito jurídico indeterminado suscetível a manipulações políticas. Argumenta que a tributação sobre apostas virtuais não cumpre função extrafiscal, pois o comportamento do jogador não responde a variações de preço da mesma forma que o consumo de bens tangíveis.
O autor ainda denuncia a tendência de captura arrecadatória do tributo, comparando-a à evolução do IOF, que, embora concebido como imposto regulatório, foi reiteradamente utilizado para ajustes fiscais. Nesse contexto, o IS correria o mesmo risco: converter-se em mecanismo de arrecadação generalizada sob o discurso de proteção social, reforçando o viés regressivo do sistema tributário brasileiro.
Síntese
A análise comparada das opiniões atuais revela consenso quanto à ambiguidade estrutural do Imposto Seletivo. Embora concebido como instrumento extrafiscal, seu desenho normativo e a destinação das receitas indicam predominância de finalidade arrecadatória, sem vinculação material às políticas públicas de mitigação das externalidades que justificaram sua criação.
Em termos práticos, o IS impõe aumento de custos setoriais significativos, especialmente nos segmentos de bebidas, transporte aéreo e jogos on-line, afetando preços e competitividade. A seletividade da tributação, contudo, não se apoia em critérios científicos ou econômicos uniformes, o que fragiliza sua legitimidade e abre margem para litígios administrativos e judiciais sobre enquadramentos, alíquotas e extensão do rol de incidência.
Do ponto de vista jurídico, o tributo mantém conformidade formal com o art. 153, VIII, da CF/88, mas suscita questionamentos quanto à observância dos princípios da isonomia, proporcionalidade e segurança jurídica, especialmente diante da amplitude do conceito de “prejudicialidade”. Ademais, a ausência de vinculação orçamentária impede a materialização da função extrafiscal que o texto constitucional pretendeu assegurar.
Conclui-se, portanto, que a aplicação segura do Imposto Seletivo dependerá de regras infralegais claras, de coerência com padrões internacionais e da integração com políticas públicas específicas, sob pena de transformar-se em mais um instrumento de arrecadação regressiva, sem efetividade regulatória. Como diretriz interpretativa, recomenda-se que sua implementação observe parâmetros técnicos de seletividade objetiva, transparência na destinação dos recursos e compatibilidade com as finalidades de proteção ambiental e sanitária que lhe conferem legitimidade constitucional.