Nas operações de comércio exterior, a cobrança da demurrage — indenização pelo uso excedente de contêineres além do período contratual — tornou-se foco de intensos debates jurídicos e administrativos.
A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao consolidar o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), introduziu um novo paradigma ao reconhecer hipóteses de força maior, como ações da Receita Federal, para afastar a obrigatoriedade de pagamento da demurrage pelos importadores. Esse novo cenário provoca impactos diretos nas relações contratuais, na previsibilidade logística e na responsabilidade civil do Estado.
A jurisprudência consolidada no Recurso Especial n.º 1.340.041-SP estabeleceu que eventos como a retenção de cargas por parte da Receita Federal podem configurar força maior, eximindo o importador da obrigação de pagar pela sobre-estadia do contêiner.
Com isso, abre-se uma importante brecha para contestação administrativa e judicial das cobranças de demurrage, principalmente em casos de paralisações de servidores e outros entraves burocráticos. Entretanto, esse entendimento não é unânime entre especialistas da área.
Segundo Bruno Felipe Ferreira e Mariane Ferri, especialistas em contencioso aduaneiro e negociação estratégica, respectivamente, [1] a decisão do STJ representa uma relevante evolução regulatória ao reconhecer a imprevisibilidade de atos da administração pública como eventos excludentes de responsabilidade. Para os autores, a jurisprudência pacificada pelo STJ estabelece maior segurança jurídica ao considerar que greves da Receita Federal e problemas nos portos, quando alheios ao controle do importador, constituem causa legítima para afastar a cobrança de demurrage.
Eles ressaltam que a Resolução Normativa nº 18/2017 da ANTAQ já previa a suspensão da contagem do prazo de free time em casos de força maior, mas a recente interpretação judicial fortalece o argumento dos importadores na esfera administrativa e contratual. A recomendação dos articulistas é que as empresas afetadas adotem estratégias documentais e negociais robustas, notificando os armadores e agentes de carga e buscando soluções extrajudiciais ancoradas na nova jurisprudência.
Por outro lado, Charles Mayer de Castro Souza e Luís Eduardo Garrossino Barbieri [2] oferecem uma análise crítica da mesma decisão. Para os autores, a interferência judicial que exime o importador da responsabilidade contratualmente assumida fere o princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda), essencial ao direito contratual e ao comércio internacional. Eles argumentam que a retenção aduaneira de contêineres, embora onerosa, não pode ser considerada evento imprevisível, pois já integra os riscos assumidos pelas partes na celebração do contrato.
Assim, a responsabilidade pelo pagamento da demurrage deve recair sobre o importador, salvo se este comprovar que não contribuiu para o atraso. Nesses casos, entendem os articulistas que a responsabilização deve ser atribuída à União, com fundamento na responsabilidade civil objetiva do Estado, conforme artigo 37, §6º da Constituição e o artigo 43 do Código Civil. Além disso, alertam para os potenciais reflexos econômicos da decisão do TJSP, que poderia resultar no encarecimento dos fretes internacionais para o Brasil, caso os armadores passem a internalizar tais custos nos contratos futuros.
Diante dessas abordagens, evidencia-se um embate entre a valorização da previsibilidade contratual e o reconhecimento judicial de eventos de força maior na esfera do comércio exterior.
Se por um lado a decisão do STJ atenua riscos operacionais e amplia a segurança jurídica dos importadores, por outro levanta preocupações quanto à estabilidade das regras contratuais e aos efeitos econômicos sistêmicos.
O debate evidencia a complexidade do tema e reitera a necessidade de mecanismos equilibrados que harmonizem os direitos dos contratantes com a atuação do Estado no controle aduaneiro.