Por Marcos Meira
Todas essas modificações legislativas refletem nítida estratégia de modernização, buscando fortalecer as finanças públicas e a administração tributária
Recentemente, foi publicada a Lei Complementar (LC) nº 208/24, que traz modificações importantes na legislação financeira e tributária aplicáveis aos entes federativos, abrangendo aspectos da cessão de direitos creditórios e da administração e cobrança de créditos tributários.
O novo artigo 39-A, acrescentado na Lei nº 4.320/64, que dispõe sobre as normas gerais de direito financeiro, permite que União, Estados, Distrito Federal e municípios possam ceder direitos creditórios (tributários e não tributários) para entidades privadas ou fundos de investimento. Essa prática, que deve ser regulada por legislação específica, contribuirá para a liquidez financeira dos entes públicos ao monetizar ativos que de outra forma seriam recebidos a longo prazo.
O dispositivo legal estabelece que a cessão de direito creditório deve preservar os termos avençados originalmente entre a Fazenda Pública ou o órgão da administração pública e o devedor ou contribuinte, assegurada a manutenção, por exemplo, da natureza do crédito, suas garantias, a correção monetária e o respectivo vencimento.
A norma estabelece, também, que a cessão não altera as responsabilidades do devedor original nem implica transferência de obrigações para o ente cedente, porém assegura à Fazenda Pública a prerrogativa de cobrança judicial e extrajudicial dos créditos de que se tenham originado os direitos cedidos.
A cessão de direitos creditórios deve preservar a base de cálculo das vinculações constitucionais no exercício financeiro em que o contribuinte efetuar o pagamento, de forma que não comprometa o cumprimento das obrigações constitucionais, como aquelas concernentes à saúde e à educação.
Igualmente, a cessão de direitos creditórios não poderá abranger percentuais do crédito que, por força de regras constitucionais, pertençam a outros entes da federação, resguardando, portanto, a autonomia financeira de cada esfera governamental.
Outra previsão importante é a caracterização das cessões de direitos creditórios como operação de venda definitiva de patrimônio público, não se enquadrando nas vedações de operações de crédito previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Relevante notar que a receita de capital decorrente da venda de ativos deve observar o disposto na LRF concernente à preservação do patrimônio público, assegurando-se que, pelo menos, 50% dessa receita seja destinada a despesas associadas a regime de previdência social e o remanescente a despesas com investimentos.
É facultado ao ente público criar sociedade de propósito específico (SPE) com a finalidade específica para realizar a cessão de direitos creditórios. Sabe-se que as entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado, controladas pelo poder público, possuem maior flexibilidade operacional em comparação com os órgãos da administração direta, o que pode permitir que o ente público estruture de forma mais eficiente a operação de cessão de créditos, e, inclusive, a possível emissão de títulos.
As instituições financeiras controladas pelos entes federados cedentes não poderão adquirir os direitos creditórios, negociar os referidos direitos em mercado secundário ou realizar operação lastreada ou garantida pelos direitos creditórios do respectivo ente, sendo permitido, contudo, a participação na estruturação financeira da operação, na qualidade de prestadora de serviços.
As alterações promovidas na mencionada norma não retroagirão para regular as cessões de direitos creditórios realizadas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios em data anterior à publicação da LC 208/24, as quais permanecerão sendo regidas pelas respectivas disposições legais e contratuais específicas vigentes à época da formalização.
As alterações promovidas no Código Tributário Nacional (Lei 5.172/66) pela nova lei refletem um aprimoramento da ferramenta de gestão tributária, ao incluir o protesto extrajudicial como causa de interrupção da prescrição de créditos tributários (artigo 174, parágrafo único, II, do CTN), medida significativa que potencializa o poder de coerção da administração tributária e pode incentivar o pagamento tempestivo de tributos, sem congestionar ainda mais o sistema judiciário.
A nova lei também autorizou as fazendas públicas a “requisitar informações cadastrais e patrimoniais de sujeito passivo de crédito tributário a órgãos ou entidades, públicos ou privados” (artigo 198, parágrafo 4º, do CTN), bem como determinou que “os órgãos e as entidades da administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes colaborarão com a administração tributária visando ao compartilhamento de bases de dados de natureza cadastral e patrimonial de seus administrados e supervisionados” (parágrafo 5º).
Essas medidas visam facilitar a localização de bens e direitos para garantir execuções fiscais propostas com o objetivo de cobrar crédito de natureza tributária, o que é salutar. Há, todavia, preocupação quanto à forma como se dará esse compartilhamento de informações, muitas delas sensíveis, sem violar o direito ao sigilo e à preservação da intimidade, já que as requisições e o compartilhamento autorizados pela nova lei, a partir de agora, prescindirão de autorização judicial.
Todas essas modificações legislativas refletem nítida estratégia de modernização, buscando fortalecer as finanças públicas e a administração tributária. A implementação efetiva dessas alterações requer, entretanto, regulamentações detalhadas e adequação dos procedimentos administrativos para garantir que as operações sejam realizadas de forma eficiente e em observância aos limites legais e constitucionais vigentes.
Fonte: https://valor.globo.com/legislacao/coluna/inovacoes-da-lc-208-24-e-os-desafios-de-sua-regulacao.ghtml