Giulia Magalhães Porto
A crescente judicialização, associada à percepção social de que as Operadoras atuam com arbitrariedade, tem provocado um aumento expressivo no ajuizamento de ações, assim como de decisões judiciais que extrapolam os limites normativos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), tornando-se um desafio de difícil controle.
Nesse contexto, surgem as seguintes controvérsias: qual é o limite entre a atuação jurisdicional e a competência regulatória da ANS? De que forma é possível preservar a técnica, a previsibilidade e a segurança jurídica no setor sem comprometer o direito à saúde garantido constitucionalmente?
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é uma autarquia que dispõe de autonomia técnica, administrativa e financeira, que tem por objetivo regular, controlar e fiscalizar o setor da saúde suplementar, harmonizando a viabilidade econômico-financeira das Operadoras, a qualidade dos serviços oferecidos e a defesa dos direitos dos beneficiários.
Para tanto, é a ANS que estabelece o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, que fixa taxativamente a cobertura mínima obrigatória dos planos de saúde, controla os reajustes, regulamenta os contratos e garantias assistenciais, além de exercer a fiscalização e impor sanções administrativas quando necessário.
O procedimento regulatório da ANS possui fundamento em critérios técnico-científicos, o que inclui consultas públicas, pareceres especializados, análises de impacto orçamentário e avaliações de custo efetividade. Essa metodologia garante que as suas decisões possuam fundamentos não só científicos, mas também jurídicos, conferindo legitimidade à atuação da Agência no setor da saúde suplementar.
Apesar da atuação criteriosa da ANS, o Judiciário tem frequentemente determinado a concessão de coberturas que não estão previstas no rol estabelecido pela Agência Reguladora, sobretudo no que diz respeito ao fornecimento de medicamentos off-label ou experimentais, terapias ainda não incorporadas, coberturas excluídas expressamente nos contratos e internações domiciliares (home care).
Essa atuação judicial, embora possua respaldo no argumento da proteção do direito fundamental à saúde, acaba por desconsiderar e ignorar os limites legais, técnicos e financeiros que sustentam o funcionamento da saúde suplementar.
O resultado é um cenário de instabilidade e insegurança jurídica, pois as Operadoras acabam sendo compelidas a assumir custos imprevistos, os contratos acabam sendo descaracterizados por decisões provisórias e, nesse viés, a autoridade regulatória da ANS acaba enfraquecida, na medida em que o seu o papel regulador perde força e efetividade.
No mês de junho de 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o Tema Repetitivo 1.082 estabelecendo o entendimento de que o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS deve ser considerado, em regra, taxativo. No entanto, admitiu a possibilidade de exceção em caso de cumprimento de requisitos técnicos cumulativos, como a existência de recomendação da CONITEC ou de entidade técnica internacional reconhecida, a comprovação da eficácia do tratamento com base na medicina baseada em evidências, a ausência de alternativa terapêutica disponível no rol e a apresentação de prescrição médica devidamente justificada.
O referido julgamento representa um marco importante na busca por equilíbrio entre o direito à saúde constitucionalmente previsto e a segurança jurídica no setor suplementar, reconhecendo, na oportunidade, o papel técnico da ANS, no entanto, permitindo a possibilidade de flexibilização em casos realmente excepcionais.
Na prática, a aplicação da tese fixada apresenta controvérsias significativas. Em simples pesquisa de jurisprudência, é possível verificar que alguns juízes de instâncias inferiores continuam a conceder tutelas de urgências em desacordo com os próprios critérios definidos e estabelecidos pelo STJ, o que contribui para a manutenção de um cenário de insegurança jurídica e de fragilidade regulatória.
Portanto, a atuação da ANS enfrenta inúmeros obstáculos de ordem técnica, institucional e estrutural e, apesar de seu caráter técnico, a sua legitimidade é frequentemente refutada nos processos judiciais, que acabam por priorizar as demandas individuais em detrimento de uma lógica coletiva e regulatória.
A ausência de reconhecimento, por parte do Poder Judiciário, da regulação técnica exercida pela ANS, tem gerado consequências significativas para as Operadoras, como, por exemplo: aumento de custos assistenciais não previstos nos contratos, necessidade de aplicação de reajustes mais elevados para lidar com a imprevisibilidade dos gastos, o risco de desequilíbrio atuarial que pode levar à descontinuidade dos produtos.
Logo, a atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), na qualidade de órgão técnico e regulador, é imprescindível para a organização e para a sustentabilidade do setor da saúde suplementar. A partir do momento em que as suas decisões são deslegitimadas pelo Poder Judiciário, há o enfraquecimento de sua autoridade e de capacidade de sua regulação.
O cenário supracitado, em que as definições técnicas são transformadas em interpretações subjetivas, não só comprometem a sustentabilidade do sistema de saúde suplementar, mas também impõe óbices à sua capacidade de planejamento e previsibilidade.
Ante o exposto, merece destaque a necessidade do fortalecimento institucional da ANS. Isso inclui o reconhecimento de suas normas e diretrizes pelo Judiciário, bem como um estreitamento para cooperação técnica por meio de instrumentos (a exemplo, o NATJUS), além de políticas públicas que levem em consideração as evidências científicas existentes e a viabilidade econômica do setor. Somente através desta articulação será razoável viabilizar o direito à saúde de forma equilibrada, tecnicamente responsável e com estabilidade regulatória.