De olho em demonstrar preocupação com o equilíbrio nas contas públicas, o que nunca foi o forte do partido no poder, o atual governo federal lançou em 12 de janeiro um pacote de combate ao déficit. O problema foi apelar para o caminho mais fácil: há muito mais foco no aumento da arrecadação (cerca de R$ 190 bilhões) do que no corte de despesas (R$ 50 bilhões). E o exemplo mais eloquente dessa distorção é o estabelecimento do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), tema que o Congresso ainda tem a chance de reverter.
O Carf é um órgão colegiado vinculado ao Ministério da Fazenda que tem a missão de julgar contestações nas áreas tributária e aduaneira (importação e exportação). Composto por conselheiros e dividido em turmas e em câmaras inferiores e superior, o comitê analisa processos administrativos nos quais empresas que se sentiram prejudicadas questionam cobranças feitas pelo Fisco. Os 130 conselheiros são, de forma paritária, representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes, indicados por confederações econômicas e entidades de classe.
Trata-se de uma antessala para tentar evitar o litígio nos tribunais. Ainda que o Carf não faça parte do Judiciário, são esperadas do órgão decisões técnicas e imparciais, assegurando segurança jurídica e jurisprudência sólida. É essa garantia que vai dar salvaguarda ao setor produtivo de que o poder público está sendo justo. A isenção, aqui, é base da relação de confiança e de respeito às regras.
Se a ideia de um voto de Minerva nesse cenário já pode parecer estranha ao leitor, fica ainda pior com uma informação extra: o colegiado é sempre presidido por representante da Fazenda Nacional. Ou seja, o voto decisivo em caso de empate será de uma das partes comprometidas na contenda, e a mais forte delas. Cria-se a figura de um juiz para lá de parcial.
Desde 2020, a Lei 13.988, sancionada pelo então presidente Jair Bolsonaro, previa que, em caso de empate, o contribuinte teria ganho da causa. Ora, trata-se de um princípio básico do Direito: diante da dúvida, a decisão deve favorecer o acusado. A norma foi alterada em janeiro pela Medida Provisória n° 1.160, parte do pacote fiscal do ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
O retrospecto do voto de qualidade, que vigorava antes da lei de 2010, sustenta desconfiança a respeito das intenções do novo governo. Um estudo conduzido pelo Núcleo de Tributação do Insper e divulgado pelo jornal Valor Econômico aponta que a União foi beneficiada em 80% dos créditos tributários julgados com a aplicação do voto de Minerva entre 2017 e 2020. Dos R$ 248 bilhões arbitrados por meio do voto de qualidade, a Fazenda Nacional ficou com R$ 196 bilhões, e as empresas, com R$ 51,7 bilhões. Um estudo anterior, feito pela FGV (Fundação Getulio Vargas) e divulgado em relatório do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros), apontou que, de 347 julgamentos decididos pelo voto de peso duplo em 2016, nenhum beneficiou as empresas demandantes. Está evidente, em número de casos e em cifras, o desequilíbrio na balança. Sob maior pressão arrecadatória, a distorção poderá ser ainda pior.
Não demorou para a sociedade civil e o setor produtivo entenderem o retrocesso imposto pela medida provisória. Empresários e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se levantaram contra a mudança e passaram a tentar alterá-la. No final de janeiro, a OAB apresentou ao Supremo Tribunal Federal ação direta de inconstitucionalidade contra a MP, com pedido de medida cautelar para suspender imediatamente os efeitos do ato do Executivo, que, por regra constitucional, passou a valer assim que publicado e enviado ao Congresso. Corretamente, argumenta a Ordem, o voto de peso duplo a favor do Estado é “incompatível com as garantias fundamentais dos contribuintes”.
Em fevereiro, depois de negociações, Haddad e a OAB anunciaram acordo atenuando trechos da MP. O governo aceitou a proposta da entidade de isentar de multa e de juros o contribuinte derrotado pelo voto de desempate. A dívida principal, corrigida pela Selic, poderia ser quitada em até 12 parcelas. Os termos do trato foram levados pela Ordem e pelo ministro ao Supremo como forma de indicar entendimento entre as partes. E o acerto também resultaria em mudanças no texto da MP.
Apesar do avanço, o jogo ainda não está decidido. No Congresso, há fortes resistências ao texto do Executivo. Um dos itens que causam preocupação no Legislativo é a elevação do valor mínimo que pode ser questionado no Carf (de 60 para 1.000 salários mínimos). É nítida a intenção de restringir o acesso à defesa. A Frente Parlamentar do Empreendedorismo, formada por 184 deputados e 34 senadores, levanta questionamentos e propõe alterações na redação das regras. O próprio presidente da Câmara, Arthur Lira, indicou desconforto ao falar da existência de um acordo “feito fora do Congresso”. O deputado também afirmou que o Parlamento “não vai se fiar” no acerto e que a medida terá de ser debatida pelos congressistas.
Uma MP vigora por até 120 dias. Depois disso, se não tiver sido votada pelas duas Casas, a medida perde a validade. Espera-se que o Congresso faça sua parte, e que o governo se ocupe também da redução de custos da máquina pública.
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Por Francisco Gaiga é advogado tributarista.
Revista Consultor Jurídico