Dentre as diversas controvérsias suscitadas em razão da publicação da Lei nº 14.689/2023 muito bem expostas pelos colunistas tanto desta “Direto do Carf” (aqui e aqui) quanto daqueles do “Território Aduaneiro” (aqui e aqui), nos parece imprescindível tecer considerações adicionais sobre a redução do percentual da multa qualificada de 150% para 100% prevista na novel legislação como regra geral, tendo em vista que aplicação da multa de 150% passou a ser restrita à hipótese em que for constatada a reiteração da conduta infracional por parte do contribuinte.
Como bem ressaltado pela Thais de Laurentiis (aqui), embora a multa de 100% deva ser aplicada retroativamente, diante do disposto na alínea “c” do inciso II do 106 do CTN, o mesmo não deve ocorrer em relação ao critério da reiteração para manutenção da multa de 150%, uma vez que isso implicaria refazer os autos de infração com a inclusão de novo critério jurídico não constante do lançamento original.
No âmbito da Terceira Seção, a problemática da retroatividade benigna emergiu quando da análise da aplicação da multa prevista multa prevista artigo 18, caput e § 2º, da Lei nº 10.833/2003, c/c inciso I do caput do artigo 44 da Lei nº 9.430/96. Liziane Angelotti Meira (aqui) aclara “trata[r]-se de uma multa de 150% aplicável no caso de falsidade. O artigo 18, caput e § 2º, da Lei nº 10.833/2003dobra a multa prevista no inciso I do artigo 44 da Lei nº 9.430/1996, sem referência ao artigo 44, § 1º, alterado pela Lei nº 14.689/2023. Ou seja, para o caso julgado, não se exigia reincidência para aplicação da multa de 150%. Esta multa e a multa de ofício agravada, apesar das similitudes em relação à exigência de fraude, passam a ter percentuais diversos no caso de não reincidência em decorrência da alteração somente no inciso II do artigo 44 da Lei nº 9.430/1996 promovida pela nova Lei nº 14.689/2023”.
Situações semelhantes à noticiada deverão ser enfrentadas — se já não o foram em acórdãos ainda pendentes de publicação — nas demais Seções de julgamento. No âmbito da 2ª Seção, a controvérsia pode se dar quando da aplicação do § 10 do artigo 89 da Lei nº 8.212/91 que determina que “[n]a hipótese de compensação indevida, quando se comprove falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo, o contribuinte estará sujeito à multa isolada aplicada (…) em dobro”. Curiosamente, tal tema foi objeto de análise de coluna de estreia nesta “Direto do Carf”, publicada há três anos (aqui).
Naquela oportunidade, buscávamos demonstrar quais seriam os elementos verificados para a qualificação da multa, uma vez que, diante de declarações inexatas, nos termos do inciso I do artigo 44 da Lei nº 9.430/96, cabível a multa de 75%; entretanto, caso comprovada a falsidade na declaração, seria a sanção de 150%.
Nos casos em que apontada pela fiscalização a falsidade na declaração, duas são as correntes que se formaram no Carf: a que prevalece na Câmara Superior de Recursos Fiscais, no sentido de que basta a utilização de créditos não dotados de certeza e liquidez, para que se atraia a aplicação da multa em dobro; e, uma segunda, que sustenta que a aplicação da multa de 150% só tem lugar quando comprovado pelas autoridades fazendárias a prática de conduta dolosa, fraudulenta ou ardilosa pelo sujeito passivo.
Antes das alterações trazidas pela Lei nº 14.689/2023 havia o seguinte cenário:
Antecedente (infração) | Consequente (sanção) |
Falsidade na declaração de compensação apresentada pelo sujeito passivo | 150% sobre o total do tributo indevidamente compensado |
Antecedente (infração) | Consequente (sanção) |
Prática da sonegação, fraude ou conluio
(atos previstos nos arts. 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502, de 30 de novembro de 1964) |
150% sobre a totalidade ou a diferença de imposto ou de contribuição objeto do lançamento de ofício
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Com a publicação da Lei nº 14.689/2023 são as situações possíveis:
Regra geral |
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Antecedente (infração) | Consequente (sanção) |
Prática da sonegação, fraude ou conluio
(atos previstos nos arts. 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502, de 30 de novembro de 1964) |
100% sobre a totalidade ou a diferença de imposto ou de contribuição objeto do lançamento de ofício
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Antecedente (infração) | Consequente (sanção) |
Prática da sonegação, fraude ou conluio, quando verificada a reincidência
(atos previstos nos arts. 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502, de 30 de novembro de 1964) |
150% sobre a totalidade ou a diferença de imposto ou de contribuição objeto do lançamento de ofício
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Questão controvertida |
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Antecedente (infração) | Consequente (sanção) |
Falsidade na declaração de compensação apresentada pelo sujeito passivo | 100% sobre o total do tributo indevidamente compensado (retroatividade benigna da Lei nº 14.689/2023) OU |
150% sobre o total do tributo indevidamente compensado (§ 10 do artigo 89 da Lei nº 8.212/91) |
Nessas circunstâncias, surgem os seguintes questionamentos: estaria mantido o percentual de 150% da multa aplicada quando comprovada a falsidade da declaração apresentada — ex vi do §10 do artigo 89 da Lei nº 8.212/81 — embora tenha ela pressupostos similares aos previstos na regra geral? Haveria uma antinomia entre as mencionadas normas? Em caso afirmativo, a mencionada antinomia deveria ser resolvida por qual critério?
Vislumbramos a possibilidade de formação de duas correntes: uma contrária à aplicação da retroatividade benigna e outra favorável.
A corrente contrária afastará a possibilidade de aplicação retroativa do disposto no artigo 8º da Lei nº 14.689/2023, ao argumento de que alteradas as penalidades previstas apenas no artigo 44 da Lei nº 9.430/1996, nas quais a fiscalização precisa demonstrar a ocorrência de sonegação, fraude ou conluio. O antecedente da mencionada norma seria distinto daquele previsto no §10 do artigo 89 da Lei nº 8.212/91, porquanto o que há de ser comprovado é a falsidade da declaração; e, não a sonegação, a fraude e o conluio. Tendo em vista que, no âmbito administrativo, exerce-se apenas o controle de legalidade do ato do lançamento, afastada estaria a possibilidade de, com arrimo em princípios constitucionais e suposta antinomia, deixar de aplicar a norma prevista no §10 do artigo 89 da Lei nº 8.212/91, que não sofreu quaisquer alterações pela Lei nº 14.689/2023.
A vertente favorável à retroação da norma que comina penalidade mais favorável, ao seu turno, subdivide-se em outras duas vertentes: uma que trata a falsidade como espécie da fraude e outra que a entende como ato distinto.
Para os alinhados à primeira linha, a falsidade seria um dos meios pelos quais se comprova a conduta dolosa, fraudulenta ou simulada. Isso ficaria claro pela leitura do §1º do inciso II do artigo 167 do Código Civil que dispõe que “haverá simulação nos negócios jurídicos quando contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira”. Sendo a falsidade, para os que dessa forma entendem, apenas uma das formas pela qual se comprova a simulação, fraude ou dolo, seria possível identificar uma antinomia entre as mencionadas normas.
Por outro lado, há quem entenda ser prescindível a comprovação da intenção ardilosa do agente, uma vez que a lei nada menciona quanto a esse aspecto. Em consonância com o significado do verbete falsidade, o mero descompasso entre a realidade e as compensações realizadas pelo interessado não atrairia, automaticamente, a aplicação da sanção em dobro. Declarações que contenham informações lançadas por mero equívoco, por exemplo, não seriam rotuladas falsas. Noutro giro, quando sabia o contribuinte — ou deveria saber — que os créditos que se pretende compensar são carentes de certeza e liquidez, há o falseamento da declaração. Tal ato, que enseja a aplicação da multa de 150%, parece ser de menor grau de ofensividade ao sistema jurídico do que aqueles praticados com sonegação, fraude e conluio, que, a partir da Lei nº 14.689/2023, passaram ser apenados com multa de 100%.
Apesar de partirem de premissas díspares, chegam em uma idêntica conclusão: as alterações promovidas pelo artigo 8º da Lei nº 14.689/2023 no artigo 44 da Lei nº 9.430/1996, com a redução das penalidades ali contidas, tornariam imperiosa a minoração da multa de 150% prevista no 10 do artigo 89 da Lei nº 8.212/91.
De acordo com as regras de solução de antinomias, seria possível argumentar que estaríamos diante de uma antinomia solúvel ou aparente,[1] a ser resolvida pelo critério da especialidade.
No entanto, a razão de tal critério hermenêutico (especialidade) é a ideia de que situações distintas merecem tratamento desigual e, por isso, a lei especial deverá prevalecer sobre a norma geral. Nesse sentido, valiosas as palavras de Norberto Bobbio, para quem “[t]ambém nesse caso a razão do critério não é obscura: lei especial é aquela que derroga uma lei mais geral, ou seja, que subtrai a uma norma uma parte de sua matéria para submetê-la a uma regulamentação diversa (contrária ou contraditória). A passagem de uma regra mais extensa (que contenha um certo genus) para uma regra derrogatória menos extensa (que contenha uma species do genus) corresponde a uma exigência fundamental de justiça, entendida como igual tratamento das pessoas que pertencem a mesma categoria… Ocorrida a descoberta ou diferenciação, a persistência na regra geral implicaria tratamento igual de pessoas que pertencem a categorias diversas e, portanto, uma injustiça” [2].
Seja adotando-se a premissa de que a falsidade é apenas uma das formas de se comprovar o conluio, a fraude e a sonegação, seja entendendo-a como ato menos gravoso do que a tríade mencionada no artigo 44 da Lei nº 9.430/1996, as questões que ficam por responder são as seguintes: existe um critério diferenciador entre sonegação fraudulenta por meio de compensação e a sonegação fraudulenta em geral? Qual seria esse critério? Por qual razão a conduta de promover compensação com créditos que não gozam de certeza e liquidez seria mais gravosa do que sonegar, fraudar ou agir em conluio?
Na ausência de diferenciação razoável, a aplicação do critério da especialidade é incoerente e incongruente, uma vez que, ao invés de diferenciar situações desiguais acabará desigualando situações que deveriam receber o mesmo tratamento. Ou, pior ainda, punindo com maior rigor conduta de menor grau ofensivo.
Importante registrar que o Superior Tribunal de Justiça afastou o critério hermenêutico de que as normas especiais devem prevalecer sobre as normas gerais. Essas decisões foram proferidas em virtude do conflito entre as alterações do Código de Processo Civil e a norma do artigo 185-A do CTN. Isso porque, o CTN (lei especial) previa uma ordem de critérios para que pudesse ser efetuada a penhora online ao passo que o CPC (norma geral posterior) eliminou os mencionados critérios. As decisões do tribunal foram no sentido de permitir a penhora de dinheiro independente do esgotamento de diligências, permitindo, por meio da teoria do diálogo das fontes, que a norma geral (CPC) prevalecesse sobre a norma especial (CTN) [3].
A mencionada teoria, defendida por Erik Jayme, foi introduzida no Brasil por Claudia Lima Marques [4] para tratar dos eventuais conflitos entre o Código de Defesa do Consumidor e o Novo Código Civil de 2002. Isso porque com a redefinição de vários princípios e de novos conceitos pelo novo Código Civil, surgiu a necessidade de se encontrar um modelo hermenêutico para solucionar as antinomias entre o Código de Defesa do Consumidor (lei especial) e o novo Código Civil, quando as normas deste último fossem mais protetivas do que a própria lei especial. A teoria do diálogo das fontes oferta, em apertadíssima síntese, “uma coordenação flexível e útil (effet utile) das normas em conflito no sistema a fim de restabelecer a sua coerência. Muda-se assim o paradigma: da retirada simples (revogação) de uma das normas em conflito no sistema jurídico ou do ‘monólogo’ de uma só norma (a ‘comunicar’ a solução justa), à convivência destas normas, ao ‘diálogo’ das normas para alcançar a sua ratio, a finalidade visada ou ‘narrada’ em ambas. Este atual e necessário ‘diálogo’ das fontes permite e leva a aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas e convergentes com a finalidade de proteção efetiva”.
Assim, a teoria do diálogo das fontes surgiu da necessidade de se admitir a prevalência das normas gerais sobre as especiais naquelas hipóteses em que as primeiras atendem melhor o critério adotado pelo ordenamento jurídico para a desigualação promovida pela norma especial.
Como esclarece Hugo de Brito Machado, “a dúvida que pode haver na capitulação legal do fato pode residir na interpretação da norma que descreve a infração, ou no fato que a concretiza. Seja a dúvida residente na interpretação da norma que define a infração, seja a dúvida residente no fato que a consubstancia, tem-se presente a norma do artigo 112 a determinar que o intérprete adote a solução mais favorável ao acusado” [5].
Se o que queremos, como bem diagnostica Rosaldo Trevisan (aqui), é “reduzir o acervo de processos do contencioso administrativo e dar mais celeridade ao julgamento”, precisamos da definição de critério para aplicação das multas por falsidade na declaração que seja congruente com o regramento criado pela Lei nº 14.689/2023. Precisamos falar mais sobre a qualificação das multas, de modo que tanto o contencioso administrativo quanto o contencioso judicial não se tornem ainda mais morosos, minando a celeridade e a redução da litigância que se pretendeu ofertar.
Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.
[1] Sobre as antinomias e os critérios de solução, cf.: BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 228/245.
[2] Ibid., p. 241.
[3] Vide, a título exemplificativo: REsp nº 1.024.128/PR, rel. min. Herman Benjamin, j. 13/5/2008 e REsp nº 1.074.228/MG, rel. min. Mauro Campbell Marques, j. 7/10/2008.
[4] MARQUES, Claudia Lima. A superação das Antinomias pelo Diálogo das Fontes: o Modelo Brasileiro de Coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002. Revista da Escola Superior da Magistratura de Sergipe, nº 07/2004.
[5] MACHADO, Hugo de Brito. Comentário ao Código Tributário Nacional: Arts. 96-138, vol. II. São Paulo: ed. Atlas, 2008, p. 278.
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Por Junia Gouveia Sampaio, mestre em Direito Tributário pela UFMG, professora de Direito Tributário e Previdenciário, advogada, diretora da Abradt e ex-conselheira titular do Carf, com atuação na 1ª e na 2ª Seção de Julgamento.
Ludmila Mara Monteiro de Oliveira, doutora em Direito Tributário pela UFMG, com período de investigação na McGill University, conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.
Revista Consultor Jurídico