Por Heloisa Estellita, Fernanda Villares e Mariana Spoljaric e Pedro M. M. Mendonça
Os dados mostram que esses problemas já não podem ser solucionados pela via jurisprudencial, exigindo intervenção legislativa
No dia 11 de junho de 2025, na FGV Direito SP, apresentamos os resultados da primeira fase da pesquisa “Evasão Fiscal: uma proposta legislativa para debate”. Nessa etapa, desenvolvida com a colaboração de diversos pesquisadores e três entidades apoiadoras, procuramos validar a hipótese central do estudo: a de que o sistema penal-tributário brasileiro apresenta alto grau de ilegitimidade, pois perdeu sua função preventiva, é aplicado de forma desigual e incoerente e acaba incentivando certas práticas criminosas.
A análise dos julgados dos tribunais superiores, de 2019 a 2024, confirmou a hipótese. Eis os achados mais relevantes.
A principal constatação refere-se aos efeitos negativos da extinção irrestrita da punibilidade pelo pagamento do crédito tributário. Foram analisados 43 acórdãos do STJ e 12 do STF, a partir dos quais se observa a fraude fiscal pode ser utilizada como instrumento de gestão de caixa, em função da confiança na possibilidade extinção da punibilidade com o pagamento posterior, especialmente em virtude da ampliação do marco temporal para momentos após o trânsito em julgado da condenação. Esse regime transformou a ameaça penal em mecanismo de cobrança fiscal, desvirtuando tanto a função preventiva da pena quanto a função de proteção de direitos fundamentais dos suspeitos que cabe ao processo penal.
No que se refere à Súmula Vinculante 24 do STF, que condiciona a tipificação de crimes tributários à constituição definitiva do crédito na esfera administrativa, outros tantos problemas foram identificados. Especial destaque merece o distanciamento temporal entre a prática da conduta e a resposta penal. Esse distanciamento compromete gravemente da ameaça penal: o longo período de inatividade entre a prática do fato e o processo penal gera sensação de impunidade; há um grande risco de que a pena, aplicada décadas depois da prática criminosa, afete um agente diferente daquele que praticou a conduta, debilitando o cumprimento do princípio da culpabilidade; por fim, a distância temporal entre o fato e o julgamento prejudica a produção de provas, tanto pela acusação, quanto pela defesa. Para contornar esses déficits, os tribunais têm criado uma série de hipóteses de mitigação da súmula, exceções casuísticas que ampliam a insegurança jurídica e revelam um esgotamento da funcionalidade da própria súmula.
Foram identificados critérios díspares na aplicação do princípio da insignificância. Um exemplo é o estabelecimento do patamar de 20 mil reais para tributos federais, enquanto cada Estado e Município pode definir seu próprio limite para seus tributos. Uma distinção que desorienta o destinatário da norma penal e compromete o princípio da isonomia.
A reforma tributária acrescentará complexidade a esse cenário. A instituição de dois tributos derivados do mesmo fato gerador, com competências administrativas distintas, resultará em diferentes momentos de constituição definitiva do crédito, potencial duplicidade de investigações criminais (Justiça Federal para CBS, Justiça Estadual para IBS) e risco de caracterização automática de múltiplos crimes para cada conduta. Isso poderá ampliar ainda mais a distância temporal entre a conduta e a resposta penal, agravando os problemas já identificados na aplicação da SV 24.
Foram identificadas outras falhas. Na classificação dos crimes tributários, por exemplo, verificou-se indefinição quanto à sua natureza, se especial ou comum, o que impacta na definição de quem pode ser considerado autor do crime. No compartilhamento de dados fiscais, persistem incertezas interpretativas, mesmo após a fixação de tese no Tema 990 pelo STF. A aplicação das regras de concurso de crimes carece de critérios específicos para o ambiente tributário. Embora 81 acórdãos no STJ abordem a continuidade delitiva, não existem parâmetros objetivos para situações envolvendo múltiplos entes federativos.
É importante registrar que a análise se limitou a decisões colegiadas (acórdãos) dos tribunais superiores. As decisões monocráticas, muito frequentes em matéria penal, não integraram a amostra, sugerindo que a incidência real dos problemas seja superior aos números encontrados.
Os dados mostram que esses problemas já não podem ser solucionados pela via jurisprudencial, exigindo intervenção legislativa.
Uma reforma, portanto, é uma necessidade urgente para restaurar a função preventiva da ameaça penal, assegurar segurança jurídica e estabelecer condições equitativas entre contribuintes. Se é verdade que o advento da reforma tributária agrava essa situação, também é verdade que oferece uma ótima oportunidade para pensarmos em uma reforma legislativa minimalista, que resgate a função preventiva e de ultima ratio do direito penal tributário, oferecendo soluções sistemáticas e coerentes, que prestigiem a segurança jurídica e devolvam à norma penal seu papel de padrão de orientação para os contribuintes.
Na próxima fase da pesquisa, faremos uma análise exploratória de como outros sistemas jurídicos têm enfrentado desafios semelhantes, especialmente com relação ao IVA. A ideia não é a de importar soluções estrangeiras, mas observar experiências relevantes para inspirar o desenvolvimento de soluções adequadas à nossa realidade.
Fonte: https://valor.globo.com/legislacao/coluna/diagnostico-e-reforma-do-direito-penal-tributario.ghtml