Financiamento de litígio é considerado fraude à execução

Por Marcela Villar

Decisão da 18ª Câmara Cível do TJMG invalidou acordo firmado entre fundo de investimentos e o Grupo Egesa

Uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) causou surpresa ao considerar financiamento de litígio como fraude à execução. O acórdão é um dos poucos precedentes sobre a matéria, segundo advogados. Os desembargadores declararam ineficaz a cessão de parte de crédito feita a fundo de investimento por uma construtora que buscou recursos para entrar com duas arbitragens contra a Petrobras, enquanto era executada de uma dívida.

O caso envolve o Grupo Egesa, que pode receber cerca de R$ 185 milhões com os processos arbitrais – entre 10% e 30% desse valor já foi usado como garantia em uma transação tributária firmada com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). O processo está em segredo de Justiça, mas o Valor teve acesso ao acórdão do TJMG. O termo de transação individual firmado com a União é público.

O entendimento da 18ª Câmara Cível do TJMG foi de que a construtora, ao ceder cerca de 4% do ganho da causa com as arbitragens ao fundo, estaria reduzindo os ativos e não conseguiria honrar a dívida, já em fase de cobrança. Para especialistas, a decisão é um ponto fora da curva e não deve prevalecer em outros casos. Outros entendem, porém, que o precedente é preocupante e deve promover uma maior governança dos investidores ao financiar litígios, o que pode elevar os juros nesses contratos.

A discussão começou com uma ação de execução movida pelo Banco Mercantil contra o Grupo Egesa, por uma dívida de R$ 1 milhão, em 2018. O juiz bloqueou possíveis créditos que a construtora teria com as arbitragens, mas o Leste Black Belt Fundo de Investimentos em Direitos Creditórios Não Padronizados, hoje Black Belt, recorreu para derrubar a penhora.

O fundo alega, nos autos, que o financiamento feito por ele garante o acesso à justiça e, sem o recurso, a Egesa não poderia sequer entrar com arbitragem contra a Petrobras. Alega ainda que a penhora feita na totalidade desses possíveis créditos pode causar um “enriquecimento sem causa” do Banco Mercantil.

“Se começarem a questionar, terminam com esse produto”
— Pedro Rocha

Outro argumento do fundo é que se o Grupo Egesa sair vencedor nas ações arbitrais, receberá “recursos muito maiores do que os valores financiados e, mesmo com o pagamento do prêmio, receberá quantias substancialmente superiores à parcela cedida”. Frisa ainda que o financiamento de litígios é incapaz de reduzir o financiado à insolvência.

O TJMG levou em consideração que havia dois contratos de cessão de crédito firmados, um em 2017 e outro em 2021. O fundo alega que o segundo acordo estaria vinculado ao primeiro, que foi firmado antes de o Grupo Egesa ser citado na execução movida pelo Banco Mercantil.

O relator, o desembargador Marcelo de Oliveira Milagres, deixou claro que não questiona a participação de terceiro investidor, mas “os efeitos desse mecanismo em vista da execução judicial pretérita”. Isso porque a segunda cessão de crédito da Egesa ao fundo ocorreu dois anos após a ação de cobrança ter sido iniciada. Portanto, a existência do processo era conhecida, assim como outros, que poderiam levar o devedor à insolvência.

Na visão de Milagres, “em operações dessa natureza, pela própria expressão econômica, não se pode desconsiderar o dever de diligência (“due diligence”) dos envolvidos, particularmente, do beneficiário da cessão de crédito”. E acrescenta no voto: “Ainda que se pudesse, em elevadíssimo esforço argumentativo, reconhecer a alegada boa-fé do apelante, teríamos que reconhecer, diante da comprovada boa-fé do credor-apelado, a prioridade temporal do crédito deste último”.

O especialista em special situations Daniel Kalansky, sócio do Loria e Kalansky Advogados, diz que a decisão causou “certa insegurança jurídica”. “Não se está diminuindo o patrimônio da companhia. Ao contrário, está se possibilitando que se traga ativo para a empresa”, afirma. “A decisão não levou em consideração a real função do financiamento de litígio”, acrescenta.

Na visão de Kalansky, o acórdão cria um alerta para os fundos que investem em ativos judiciais. “É um precedente ruim e perigoso que deve ser revisto, porque acaba aumentando o custo de transação desse tipo de operação, na medida em que vai exigir uma due dilligence maior.”

Ricardo Freitas Silveira, sócio do Lee, Brock, Camargo (LBCA) Advogados e que teve a tese de doutorado citada no acórdão, afirma que o entendimento do tribunal deve se limitar a esse caso em específico. “A decisão não questiona a prática de financiamento de litígios em si, mas acertadamente diz que o fundo não pode ter prioridade sobre um bem que já tinha execução anterior”, afirma ele, defendendo a regulamentação da matéria.

Para o professor da PUC-Rio Pedro Rocha, a decisão do TJMG é equivocada. “O financiador traz paridade de armas e o crédito só pode existir no futuro por causa desse financiador”, diz ele, acrescentando que o financiamento de litígios existe, principalmente, para empresas em crise.

“Se começarem a questionar o financiamento de litígios, terminam com esse produto no Brasil, porque o grande cliente é a empresa em dificuldade”, afirma. “O risco vai ficar muito alto e os investidores vão cair fora”, completa Rocha. Isso porque, segundo ele, há grande dificuldade para os fundos saberem de todas as execuções em curso contra uma empresa antes de financiar determinado caso. “Inviabilizaria o produto e o financiamento.”

O financiamento de litígios, para o advogado Marcelo Lucidi, sócio de Duarte e Forssell Advogados, é um instrumento de acesso à justiça e só poderia ser considerado fraudulento se ficar provada a má-fé do financiador. “Para a averiguação da má-fé, não basta presumir que o financiador tinha conhecimento do processo de execução, em decorrência da auditoria que usualmente precede esse tipo de operação financeira”, diz.

A má-fé existiria, segundo ele, se houvesse provas de que “mesmo se obtido êxito na demanda financiada, não sobrariam recursos ao cedente para pagar a dívida preexistente”. “Não basta a existência de um processo de execução em curso, deve-se demonstrar que esse processo é capaz de reduzir o devedor à insolvência”, afirma Lucidi, indicando que seria necessário provar que o Grupo Egesa tem mais dívidas do que ativos.

O Banco Mercantil vendeu o crédito nesse caso para Travessia Securitizadora de Créditos Financeiros XXV S/A e foi feito um acordo entre devedor e credor, segundo fontes que acompanham a discussão. O fundo recorreu da decisão do TJMG. O recurso pende de análise de admissibilidade para o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

 

Fonte: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2025/04/30/financiamento-de-litigio-e-considerado-fraude-a-execucao.ghtml