Imóvel remanescente do ativo imobilizado, no momento do encerramento de PJ, pode ser entregue ao sócio como pagamento de lucros?

Uma questão muito comum no encerramento de atividades de empresas é o fato de, após a liquidação possível de ativos e passivos, ainda remanescerem imóveis registrados no imobilizado, sobre os quais os sócios se dispõem a receber da sociedade.  Se ainda assim, o balanço patrimonial revelar saldo na conta de lucros acumulados e não houver mais disponibilidade de saldo bancário ou outros valores equivalentes de caixa, suficientes para o pagamento desses lucros, a situação é bem mais tentadora. Podemos pagar os lucros por meio da entrega deste imóvel aos sócios?

Há algum impedimento para a substituição do pagamento de lucros da forma tradicional, em moeda corrente, pela dação de imóvel em pagamento? Se não houver nenhum óbice legal, haverá tributação incidente para a PJ que estiver transferindo o imóvel ao sócio como pagamento de lucros? Que instrumento utilizar para formalizar a entrega do imóvel como pagamento desses lucros aos sócios?

O tema se justifica pela recorrência com que os profissionais da contabilidade e do direito se defrontam com ele junto aos seus clientes. Além do mais, havendo uma alternativa simples e segura para que esses profissionais possam sugerir aos seus clientes, a proposta passa a ser muito mais interessante para todos. É o que será tratado neste artigo.

Existindo lucros, apurados em contabilidade regular, não havendo nenhum óbice entre os sócios e nenhuma restrição na legislação do imposto de renda para a sua distribuição, os lucros poderão ser pagos em moeda corrente nacional, em bens móveis ou imóveis ou por qualquer outra forma, desde que haja concordância sobre a forma de pagamento de quem recebe, conforme dispõe o Art. 356, do CC (Lei nº 10.406/2002):

Art. 356. O credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida. (grifamos).

Na prática, havendo a concordância do sócio credor na forma de distribuição de lucros escolhida, o valor poderá ser pago por meio de dação do imóvel em pagamento, com respaldo no Art. 356 do CC.

Pelo Art. 357, do mesmo CC, uma vez fixado o preço da coisa a ser dada em pagamento, as relações jurídicas entre as partes serão reguladas pelas normas do contrato de compra e venda:

Art. 357. Determinado o preço da coisa dada em pagamento, as relações entre as partes regular-se-ão pelas normas do contrato de compra e venda. (grifamos).

Do ponto de vista tributário, os lucros gerados e regularmente apurados a partir de 01 de janeiro de 1996, quando pagos em moeda corrente nacional, como de praxe, estão isentos do IR, tanto para a pessoa jurídica pagadora, quanto para o sócio que recebe o valor, podendo este último ser pessoa física ou jurídica. Neste ponto, é importante garantir que a empresa que estiver distribuindo lucros, qualquer que seja a forma de pagamento adotada, não esteja em débito, não garantido, por falta de recolhimento de imposto sobre a renda no prazo legal, tendo em vista a vedação do Art. 1.018 do RIR/2018.

Neste ponto, a questão, não comum a ser esclarecida, é que se o pagamento dos lucros distribuídos for feito mediante a dação do imóvel de propriedade da fonte pagadora, para quitação de lucros aos sócios, haverá tributação na PJ que realizou o pagamento. Aqui se torna necessário qualificar a natureza da operação para a empresa que estiver transferindo este imóvel, em relação à qual poderá estar registrado no imobilizado (ativo não circulante) ou pertencer ao seu estoque (ativo circulante).

Pois bem, para a empresa, o valor da operação representa uma receita de venda de mercadorias (se o imóvel pertencer ao estoque, no caso de a empresa explorar a atividade imobiliária de compra e venda de imóveis próprios, por exemplo) ou receita de venda de ativo (se o imóvel estiver no imobilizado). Portanto, se o imóvel fizer parte do estoque, então estará sujeito a tributação pelo IRPJ, CSLL, PIS e Cofins, como receita de venda de mercadorias. Por outro lado, se constar do imobilizado, deverá ser apurado o ganho de capital a ser tributado na pessoa jurídica que estiver pagando o lucro[1].

Desta forma, o pagamento de lucros por meio da entrega de um bem imóvel estará sujeito à tributação na fonte pagadora, quer como receita de venda de mercadorias ou como receita de venda de imobilizado, com base no valor da operação.

Com efeito, o Art. 51 da Lei nº 7.450/1985 valida esta posição:

Art 51 – Ficam compreendidos na incidência do imposto de renda todos os ganhos e rendimentos de capitalqualquer que seja a denominação que lhes seja dada, independentemente da natureza, da espécie ou da existência de título ou contrato escrito, bastando que decorram de ato ou negócio, que, pela sua finalidade, tenha os mesmos efeitos do previsto na norma específica de incidência do imposto de renda. (grifamos).

Portanto, ocorre a incidência do IR sobre o ganho de capital na operação de alienação de bens ou direitos ou cessão ou promessa de cessão de direitos, incluindo-se as seguintes operações por: compra e venda, permuta, adjudicação, desapropriação, dação em pagamento, doação, procuração em causa própria, promessa de compra e venda, cessão de direitos ou promessa de cessão de direitos e contratos.

A legislação tributária encampou as regras do direito civil. Os Arts. 356 e 357 do CC compõem o capítulo V – Da Dação em Pagamento, e, uma vez fixado o preço da coisa dada em pagamento, entre a fonte pagadora e o sócio, as relações entre as partes passarão a ser pautadas pelas normas do contrato de compra e venda. Assim, a dação em pagamento do imóvel, pertencente ao estoque da pessoa jurídica, em favor do sócio, representa uma operação de venda e compra entre a empresa o próprio sócio.

Nesta esteira, a Solução de Consulta SRRF 09/Disit nº 12/2012 trata de um contribuinte que, operando com atividade de incorporação imobiliária, compra e venda de imóveis próprios, questiona se a distribuição de lucros por meio de dação em pagamento de imóveis de seu estoque, a preço de custo, geraria alguma tributação para a empresa pagadora, optante do lucro presumido.

A posição da Solução de Consulta é que a dação em pagamento é uma modalidade de venda e usa como exemplos da legislação tributária o § 2º, do Art. 5º, da IN SRF nº 83/2001 que diz que “integram também a receita bruta da atividade rural: (…) IV – o valor da entrega de produtos agrícolas, pela permuta com outros bens ou pela dação em pagamento; (negritamos)”. Mas, se o bem for do ativo imobilizado da pessoa jurídica pagadora e o valor pelo qual o bem foi entregue for igual ao seu valor contábil, não haverá ganho de capital. Veja-se o item 08 desta Solução de Consulta retro referida:

08. Através destes atos resta evidenciado que a entrega de bens em dação em pagamento produz o mesmo efeito que produziria sua venda. Dessa forma, a natureza da receita que será gerada depende exclusivamente da natureza do bem. Assim, a entrega de bens que integrem, por exemplo, o ativo imobilizado da pessoa jurídica, estará sujeita à apuração do resultado pela diferença entre o valor pelo qual o bem foi entregue e o seu valor contábil. E essa diferença integrará a base de cálculo tributável. Por outro lado, se se tratar de bem integrante do estoque, sua entrega será tratada como uma venda regular, e o valor pelo qual se deu a transferência constituirá receita bruta da atividade. (grifamos).

Então, é possível o pagamento de lucros ao sócio de valor igual ao do imóvel, na forma de dação em pagamento deste bem, avaliado pelo seu valor contábil, já que não haveria “diferença entre o valor pelo qual o bem foi entregue e o seu valor contábil” e, por conseguinte, também não haveria resultado positivo a ser apurado e, portanto, estaria livre de tributação?

Não! Porque, por definição o valor contábil do bem será sempre inferior ao seu valor de mercado, por que o valor da depreciação acumulada será sempre superior a zero. A questão aqui é o risco fiscal de distribuição disfarçada de lucros na operação.

No caso em análise, remanesce o risco de ser entendida a operação como distribuição disfarçada de lucros, se o valor contábil do imóvel for muito inferior ao valor de mercado. O Art. 528 do RIR/2018 presume distribuição disfarçada de lucro quando se aliena bem do ativo, por valor notoriamente inferior ao de mercado a pessoa ligada, conforme segue:

Art. 528. Presume-se distribuição disfarçada de lucros no negócio pelo qual a pessoa jurídica (Decreto-Lei nº 1.598, de 1977, art. 60,caput, incisos I ao IV, VI e VII):

I – aliena, por valor notoriamente inferior ao de mercado, bem do seu ativo a pessoa ligada;

(…)

VI – realiza com pessoa ligada qualquer outro negócio em condições de favorecimento, assim entendidas condições mais vantajosas para a pessoa ligada do que as que prevaleçam no mercado ou em que a pessoa jurídica contrataria com terceiros.

§1º O disposto nos incisos e IV do caput não se aplica nas hipóteses de devolução de participação no capital social de titular, sócio ou acionista de pessoa jurídica em bens ou direitos avaliados a valor contábil ou de mercado (Lei nº 9.249, de 1995, art. 22). (grifamos).

(…)

 

O sócio é por excelência uma pessoa ligada à fonte pagadora do lucro, conforme prevê o inciso I, do Art. 529 do mesmo RIR/2018, conforme abaixo:

Art. 529. Considera-se pessoa ligada à pessoa jurídica (Decreto-Lei nº 1.598, de 1977, art. 60, § 3º):

I – o sócio ou o acionista desta, mesmo quando for outra pessoa jurídica; 

II – o administrador ou o titular da pessoa jurídica; e 

III – o cônjuge e os parentes até o terceiro grau, inclusive os afins, do sócio pessoa física de que trata o inciso I e das demais pessoas a que se refere o inciso II. (grifamos).

Ante todo o exposto, a única alternativa legítima e possível, para que o imóvel possa ser transferido ao sócio pelo valor contábil, sem caracterizar distribuição disfarçada de lucros, é como devolução de sua participação no capital, conforme previsto no § 1º do Art. 528, do RIR/2018 acima.

O Art. 22 da Lei nº 9.249/1995, conforme abaixo, valida esta posição:

Art. 22. Os bens e direitos do ativo da pessoa jurídicaque forem entregues ao titular ou a sócio ou acionista, a título de devolução de sua participação no capital socialpoderão ser avaliados pelo valor contábil ou de mercado

§1º No caso de a devolução realizar-se pelo valor de mercado, a diferença entre este e o valor contábil dos bens ou direitos entregues será considerada ganho de capital, que será computado nos resultados da pessoa jurídica tributada com base no lucro real ou na base de cálculo do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido devidos pela pessoa jurídica tributada com base no lucro presumido ou arbitrado. 

§2º Para o titular, sócio ou acionistapessoa jurídica, os bens ou direitos recebidos em devolução de sua participação no capital serão registrados pelo valor contábil da participação ou pelo valor de mercado, conforme avaliado pela pessoa jurídica que esteja devolvendo capital

§3º Para o titular, sócio ou acionistapessoa física, os bens ou direitos recebidos em devolução de sua participação no capital serão informados, na declaração de bens correspondente à declaração de rendimentos do respectivo ano-base, pelo valor contábil ou de mercado, conforme avaliado pela pessoa jurídica

§4º A diferença entre o valor de mercado e o valor constante da declaração de bens, no caso de pessoa física, ou o valor contábil, no caso de pessoa jurídica, não será computada, pelo titular, sócio ou acionista, na base de cálculo do imposto de renda ou da contribuição social sobre o lucro líquido. (grifamos).

A conclusão da Solução de Consulta Cosit nº 56/2019, que se aplica tanto para uma SCP – sociedade em conta de participação – quanto às demais sociedades, constitui-se em mais um argumento a corroborar este pensamento:

CAPITAL SOCIAL – DEVOLUÇÃO DA PARTICIPAÇÃO NO CAPITAL SOCIAL MEDIANTE ENTREGA DE ATIVOS. 

Aplicam-se às SCPs as mesmas regras estabelecidas para as demais pessoas jurídicas para devolução da participação na sociedade. A devolução de capital aos sócios, quando da dissolução ou extinção da sociedade pode ser feita mediante entrega de ativos, ao seu valor contábil, ou valor de mercado, conforme previsto no art. 22 da Lei nº 9.249, de 1995. 

Dispositivos Legais: Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004, arts. 1 ao 4º; Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, art. 10; Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil -, arts. 991, 993, 994, 996 e 1.007; Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, arts 10 e 22; e ADI nº 14, de 4 de maio de 2004. (grifamos).

Desta forma, por todo o exposto, podemos, sim, pagar os lucros aos sócios por meio da entrega de imóvel de propriedade da fonte pagadora, se houver aceitação entre as partes. Não há, portanto, nenhum impedimento para que não se possa substituir o pagamento de lucros, da maneira tradicional, através de transferências bancárias, por meio da dação de imóvel em pagamento pela fonte pagadora dos lucros.

Haverá, sim, a tributação na fonte pagadora, a depender da natureza da receita auferida, que poderá ser venda de mercadorias (se o imóvel estiver no estoque – ativo circulante) ou venda de ativo imobilizado (se estiver no ativo não circulante).

O instrumento indicado para formalizar a entrega do imóvel nestas condições é a lavratura de escritura pública, modalidade de dação em pagamento, em Cartório de Notas e depois, levada a registro em Cartório de Registro de Imóveis.

Se, de todo modo, não for possível o pagamento de distribuição de lucros por meio da transferência de imóvel remanescente ao sócio, por razões de diferenças entre o valor contábil e o valor de mercado do imóvel, comparativamente ao montante de lucro a ser distribuído, tudo por ocasião do encerramento de atividades da PJ, é bem factível se estudar a possibilidade da entrega do imóvel ao sócio, na forma de devolução sua participação no capital social.

Para tanto, é necessário que os lançamentos contábeis dessa operação sejam bem elaborados, principalmente com históricos esclarecedores, a fim de garantir e validar por completo a operação, já que se constitui em elemento de prova em favor do contribuinte. Poderão ainda servir como prestação de esclarecimentos ao fisco, se necessários.

Suponha uma empresa que possua capital social já integralizado de R$ 500.000,00 e que está transferindo o imóvel aos sócios, como devolução de suas participações neste capital, a valor contábil. O custo histórico do imóvel é de R$ 400.000,00 e o saldo de Depreciação Acumulada na data é de R$ 80.000,00. O complemento da devolução de capital aos sócios, no valor de R$ 180.000,00, está sendo realizado por meio de transferências bancárias.

Seguem abaixo, os lançamentos contábeis  pertinentes. Em relação à redação dos históricos, muitas palavras estão sendo abreviadas ou omitidas para atender à limitação de espaço na escrituração digital do livro diário, porém mantidas as regras de melhores práticas contábeis aplicáveis ao caso.

L1 Conta e Histórico Valor R$
D CAPITAL SOCIAL 320.000,00
C IMÓVEL “XX” 320.000,00
H PELA DEVOL E BAIXA DO IMOV “XX” REGISTRADO NO ATIVO IMOBILIZADO, A VALOR CONTÁBIL (VR HISTÓRICO, LÍQUIDO DA DEPREC ACUMUL). REFERIDO IMÓV ESTÁ SENDO DEVOLVIDO AOS SÓCIOS “A” E “B”, NAS SEGUINTES PROPORÇÕES, CF CONSTA DA ÚLTIMA ALT CONTRATUAL, REGISTR JUNTA COML DO EST … SOB NR …., EM …/…/…, A SABER: SÓC “A”, CPF. … – PARTE IDEAL CORRESP A 50,0%, NO VR DE R$ 160.000,00 E SÓC “B”, CPF. … – PARTE IDEAL CORRESP A 50,0%, NO VR DE R$ 160.000,00.

 

L2 Conta e Histórico Valor R$
D DEPREC ACUMUL IMÓVEL “XX” 80.000,00
C IMÓVEL “XX” 80.000,00
H PELA BAIXA DO SALDO DEPREC ACUMUL DO IMÓV “XX”, EM RAZÃO DA TRANSFER AOS SÓCIOS “A” E “B”, JÁ IDENTIFICADOS LANÇ ANTER, EM VIRTUDE DE DEVOL DAS PARTIC QUE LHES CABEM NO CAP SOCIAL.

 

L3 Conta e Histórico Valor R$
D CAPITAL SOCIAL 180.000,00
C BANCOS 180.000,00
H PELO PGTO POR TRANSF BANCÁRIAS AOS SÓCIOS “A” E “B”, A TÍTULO DEVOL PARTIC NO CAP SOCIAL, NAS SEGUINTES PROPORÇÕES, CF CONSTA DA ÚLTIMA ALT CONTRATUAL, REGISTR JUNTA COMERC DO EST … SOB NR …., EM …/…/…, A SABER: SÓC “A”, CPF. … – PARTE CORRESP A 50,0%, NO VR DE R$ 90.000,00 E SÓC “B”, CPF. … – PARTE IDEAL CORRESP A 50,0%, NO VR DE R$ 90.000,00.

 

[1] Para uma melhor compreensão, se a empresa for do ramo imobiliário, e estiver sendo tributada pelo lucro presumido e o imóvel estiver no estoque, estará sujeita às seguintes percentagens de tributos: (a) IRPJ de 15% sobre 8% do valor da venda; (b) Adicional do IRPJ de 10,0% sobre o lucro presumido (alíquota de presunção de 8%) excedente a R$ 20.000,00 no mês; (c) CSLL de 9% sobre 12% do valor da venda; (d) PIS cumulativo de 0,65% sobre o valor da venda e (e) Cofins cumulativa de 3,0% sobre o valor da venda. Apenas para que o leitor fique seguro, para um pagamento de lucros, na forma de transferência de um imóvel, no valor de R$ 1.000.000,00, haverá um total de tributos devidos de R$ 65.300,00 ou 6,53% do valor da operação.

Para a mesma empresa, se o imóvel estiver registrado no imobilizado pelo custo histórico de R$ 400.000,00, com depreciação acumulada de R$ 80.000,00 e for dado para pagamento dos mesmos lucros de R$ 1.000,000,00, então o ganho de capital tributável será de R$ 680.000,00 (R$ 1.000.000,00 (-) R$ 400.000,00 (+) R$ 80.000,00 = R$ 680.000,00). O IR devido é de 15,0% sobre o ganho de R$ 680.000,00, o que dá R$ 102.000,00, representando 10,2% do valor da operação.

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