O ITBI voltou ao centro do contencioso municipal. A disputa deixou de ser um debate técnico restrito a cartórios e procuradorias para atingir, diretamente, holdings familiares, incorporadoras e planejadores patrimoniais. Afinal, quando a Constituição fala em imunidade na realização de capital, o que exatamente permanece fora do alcance do fisco? E por que, apesar de precedentes relevantes, a prática administrativa insiste em cobrar além do que foi decidido?
O pano de fundo é conhecido: o art. 156, § 2º, I, da Constituição distingue a não incidência na integralização de capital e nas reorganizações societárias, com condicionantes apenas para estas últimas. Na leitura de parte da doutrina, essa arquitetura cria uma imunidade incondicionada para a conferência de bens que integraliza capital subscrito e outra, condicionada, para fusões, cisões, incorporações e extinções. O problema é que, após o Tema 796, muitas prefeituras passaram a extrapolar o precedente para exigir “diferenças” entre valor venal e valor declarado. Isso tem inflado autuações, travado registros e gerado um circuito de judicialização em série.
Se você integraliza imóveis em uma holding, quanto custa a insegurança? A resposta varia conforme o CEP: há municípios que emitem guias automáticas com “tabelas de referência”; outros instauram procedimentos de arbitramento baseados em laudos feitos por fiscais; e há cartórios que se tornam mais restritivos do que o próprio fisco. O efeito prático é previsível: custos adicionais, alongamento de prazos e incerteza jurídica — exatamente o oposto do que se espera de uma imunidade constitucional.
Segundo o autor Bruno Couto Rocha, a tese do STF no RE 796.376/SC (Tema 796) foi lida de forma distorcida por diversas prefeituras. O precedente, afirma, cuidou apenas de limitar a imunidade ao valor efetivamente destinado à integralização do capital subscrito, quando há excedente contabilizado como reserva, e não autorizou tributar diferenças entre o “valor venal” e o valor declarado pelo contribuinte na conferência. Na avaliação do articulista, a distinção constitucional entre imunidade incondicionada (integralização) e condicionada (operações societárias) foi reafirmada no voto vencedor, e a tentativa municipal de tributar “diferenças de mercado” viola a literalidade do texto constitucional.
Existe reforços jurisprudenciais recentes ao alcance correto da imunidade, a exemplo de decisões que afastaram a cobrança sobre “diferenças venais” e reconheceram a não incidência quando todo o valor é destinado ao capital, sem formação de reserva. Nessa linha, as autuações que comparam valor de mercado com valor declarado desbordam do que foi decidido no Tema 796 e devem ser repelidas pelo Judiciário, sob pena de esvaziar a garantia constitucional e alimentar uma “indústria de autuações” sem base legal.
Segundo os autores Maria Beatriz Silva de Almeida e Nilton Ivan Camargo Ferreira, o arbitramento da base de cálculo tem se tornado um atalho arrecadatório em diversas capitais, apesar de o CTN restringi-lo a hipóteses excepcionais de omissão ou inidoneidade das informações (art. 148). Na prática descrita, fiscais municipais substituem peritos habilitados, produzem “laudos” sem suporte técnico e, por vezes, enfrentam até coisa julgada que já fixou a metodologia de cálculo, reabrindo discussões encerradas e corroendo a segurança jurídica.
O devido processo exige motivação concreta e prova técnica idônea para afastar a presunção do valor declarado, cabendo ao fisco — e não ao contribuinte — o ônus de demonstrar inconsistências. Alguns julgados rechaçam arbitramentos genéricos e reconhecem a necessidade de avaliação segundo a NBR 14.653-2 por profissional habilitado (TJSC, Apelação nº 5012193-14.2023.8.24.0033, j. 1/4/2025; TJSP, Apelação Cível nº 1028415-13.2023.8.26.0602, j. 25/7/2025; e Apelação Cível nº 1044859-51.2025.8.26.0053, j. 9/9/2025). Vale mencionar o precedente do STJ (REsp 1.104.900/ES) sobre a exigência de fundada dúvida para arbitramento.
De acordo com Luís Flávio Neto e Maria Eugênia Martignon, a controvérsia ganhou contornos próprios nas holdings: embora o STF tenha restringido a imunidade ao valor efetivamente integralizado (Tema 796, RE 796.376/SC), muitos municípios e cartórios passaram a exigir ITBI sobre a diferença entre o valor de mercado do imóvel e o valor atribuído para a conferência — incluso em casos sem reserva de capital. A par disso, lembram que o STJ, no Tema 1.113, fixou que a base de cálculo é o valor de mercado do imóvel, vedando o uso de “valor venal de referência” do IPTU, o que impõe coerência técnica à atuação administrativa.
A heterogeneidade procedimental entre municípios — emissão automática de guias, exigência de prévia avaliação fiscal, ou até pagamento direto pelo contribuinte — somada a cartórios mais restritivos do que a própria Fazenda, eleva a fricção operacional e o custo de conformidade. Essa assimetria já compromete planejamentos patrimoniais e sucessórios, exigindo análise casuística e diligência prévia quanto à postura do ente local e dos registradores.
Segundo Leonardo Zenkoo Matsumoto, o STF reconheceu repercussão geral no RE 1.495.108 (Tema 1.348) para definir se a imunidade de ITBI, na integralização de capital com imóveis, alcança empresas com atividade preponderantemente imobiliária. O autor sustenta que a leitura sistemática do art. 156, § 2º, I, evidencia uma imunidade incondicionada para a realização de capital — independentemente do ramo do adquirente — e uma imunidade condicionada apenas para transmissões em reorganizações societárias. O julgamento, assim, pode reordenar a jurisprudência infraconstitucional e reduzir a insegurança que hoje onera operações lícitas de capitalização.
Se prevalecer a tese de imunidade incondicionada também para companhias do setor imobiliário, haverá estímulo à utilização de imóveis como aporte de capital em holdings e empresas operacionais, com impacto direto no custo de estruturação societária e na previsibilidade regulatória. Em sentido oposto, se a leitura restritiva for consolidada, mantém-se o status quo de recolhimento, com espaço residual para ações de repetição de indébito e eventual modulação de efeitos. Em qualquer cenário, o julgamento do Tema 1.348 é visto como divisor de águas para o mercado imobiliário e para a delimitação das competências municipais.
No balanço geral, a situação atual do ITBI aponta uma matriz comum: excesso arrecadatório em procedimentos de arbitramento e extrapolação de precedentes, convertendo exceções em regra e relativizando a imunidade constitucional. Quando o fisco desloca o ônus da prova, despreza a necessidade de avaliação por profissional habilitado ou ignora coisa julgada, a litigiosidade se torna inevitável e a confiança no sistema tributário se fragiliza. O custo não é apenas do contribuinte; é sistêmico.
A leitura do Tema 796 não autoriza a tributação da diferença entre valor venal e valor declarado na conferência que integraliza capital, pois a tese se limitou ao excedente contabilizado fora do capital subscrito. Deslocar o debate para “valores de referência” ou para arbitramentos sem motivação concreta implica revogar, por via administrativa, a própria lógica das imunidades. É nesse ponto que o Tema 1.113 do STJ sobre base de cálculo e o Tema 1.348 do STF sobre o alcance da imunidade tendem a dialogar, pedindo coerência institucional.
Sem adotar posições pessoais, a síntese é pragmática: enquanto as cortes superiores calibram o perímetro da imunidade e da base de cálculo, é recomendável que operações de integralização sejam instruídas com avaliação técnica independente, lastro documental robusto e planejamento que antecipe idiossincrasias municipais e cartorárias.
No curto prazo, isso mitiga contenciosos e preserva cronogramas societários. No médio prazo, a uniformização jurisprudencial deverá reduzir a assimetria hoje observada entre a Constituição de 1988 e a prática tributária local.
Fonte: https://tributario.com.br/a/imunidade-do-itbi-sob-ataque-nos-cartorios-e-prefeituras/