Por Laura Carvalho Higino
Em meio à crescente tensão comercial entre os Estados Unidos e a China, vídeos em inglês e que mostram supostos trabalhadores chineses fabricando artigos de luxos idênticos aos vendidos por marcas de grife como Hermès contam com milhões de visualizações em plataformas digitais como o TikTok.
A polêmica ganhou força após reportagem do jornal O Globo noticiar que parte das bolsas Birkin, da Hermès — cujo preço pode ultrapassar os US$ 35 mil — estaria tendo partes de sua produção feitas na China. Segundo a mesma reportagem, fabricantes chineses alegam ser capazes de produzir as peças por menos de US$ 1.400, levantando dúvidas sobre o real custo de produção e a legitimidade da narrativa de exclusividade cultivada pelas marcas de luxo.
Mais do que um detalhe industrial, a revelação causou questionamentos no público devido aos altos preços dos produtos frente ao aparente baixo custo de produção chinês. A partir disso, uma pergunta se impõe: por que a origem do produto, que deveria ser um dado objetivo, se tornou um elemento estratégico a ser omitido? E, mais importante: há limites jurídicos para essa omissão?
No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), embora robusto em termos de proteção ao consumidor contra práticas comerciais abusivas e propaganda enganosa, ainda não alcança com precisão os efeitos jurídicos da chamada narrativa de valor. Em um cenário onde marcas vendem experiências, símbolos e posição social — muitas vezes mais do que o próprio produto —, a cadeia produtiva se tornou um ativo simbólico, muitas vezes mais relevante do que o próprio produto e a omissão deliberada da origem produtiva, especialmente em setores de alto valor agregado, pode configurar uma forma sofisticada de manipulação do juízo de escolha do consumidor e assimetria concorrencial.
Origem como símbolo de valor e omissão como possível infração ao dever de informação
A narrativa da origem de um produto pode agregar valor ou depreciá-lo, e empresas de luxo sabem disso. Ao manterem o “feito na China” em silêncio, marcas como Hermès evitam associar seus artigos de luxo à imagem que o mercado ainda atribui à produção chinesa: industrial, massificada e genérica. Não por acaso, o branding dessas empresas omite intencionalmente a origem fabril, operando de forma estratégica na construção de um valor simbólico baseado em tradição, exclusividade e sofisticação como parte ativa para o sustentáculo do prestígio e posicionamento desses produtos no mercado.
Não é novidade que as cadeias produtivas estão cada vez mais descentralizadas. Um mesmo produto pode ser projetado na Itália, ter matéria-prima do Brasil, ser montado na China e comercializado na Europa com o selo “made in France” — desde que a legislação local assim permita. O que está sendo discutido aqui não é apenas a questão formal da origem, porém a forma como as empresas narram ou silenciam esse percurso produtivo.
Em mercados de bens simbólicos — como o do luxo — a procedência assume papel determinante na construção do valor. Quando essa origem não é real, entretanto construída narrativamente por meio de omissões deliberadas, temos um fenômeno que vai além do marketing: trata-se de uma estratégia comercial que manipula a percepção de valor.
O CDC, em seus artigos 6º, III, e 31, garante ao consumidor o direito à informação clara e adequada, incluindo dados sobre origem. A menção expressa à procedência reforça que sua omissão estratégica pode ter relevância jurídica, sobretudo quando afeta a percepção sobre o valor simbólico ou a qualidade do produto.
Se a procedência de um produto é elemento relevante na sua valoração (como ocorre com vinhos, queijos ou cafés), nada impede que a mesma lógica se aplique a bens de luxo, cuja precificação depende diretamente da construção simbólica da origem. O não fornecimento dessas informações, ou sua ocultação deliberada, pode configurar uma violação do princípio da transparência, da boa-fé objetiva e, em certos casos, até mesmo de prática comercial enganosa (artigo 37, §1º do CDC). O parágrafo 1º do artigo 37 do CDC, que proíbe toda publicidade enganosa ou abusiva, se aplica também às práticas omissivas.
Há ainda uma dimensão concorrencial nesse debate. Marcas nacionais que valorizam sua produção local enfrentam concorrência de produtos estrangeiros que, ao serem reembalados por grandes grifes internacionais, ocultam sua origem real e se reposicionam como “europeus”. Isso cria um ambiente de concorrência assimétrica, onde não há disputa justa de mercado, porém um jogo narrativo sustentado em omissões.
Embora o Direito Concorrencial brasileiro, especialmente por meio do Cade, não trate diretamente desse tipo de prática simbólica, o tema pode — e deve — ser incorporado à análise de mercado no contexto de desigualdade de condições informacionais.
Regulação simbólica da cadeia produtiva
No Brasil, embora existam regras pontuais sobre rotulagem (como em alimentos, bebidas e produtos têxteis), ainda falta uma abordagem normativa sobre a transparência simbólica da cadeia produtiva. Em um mercado onde narrativas vendem mais do que produtos, o Direito precisa acompanhar a evolução do valor intangível. Não se trata, aqui, de exigir que toda peça traga um dossiê completo da sua origem — mas de impedir que o silêncio se torne estratégia de manipulação da percepção de valor.
Na França, em específico, a indicação “made in France” ou “fabriqué en France” não é obrigatória para produtos não alimentares, mas, quando utilizada, deve seguir critérios específicos estabelecidos pelos serviços aduaneiros em conformidade com a regulamentação europeia (artigos 22° a 26° do Regulamento n° 2.913/92, de 12 de Outubro de 1992 e artigos 35° a 65° e anexos 9° a 11° do Regulamento n° 2.454/93, de 2 de julho de 1993). De acordo com o Ministério da Economia francês, um produto pode ser rotulado como “made in France” se for inteiramente obtido na França ou se tiver passado por sua última transformação substancial na França.
Esses critérios permitem que produtos com etapas significativas de produção realizadas fora da França ainda possam ser rotulados como “made in France”, desde que a transformação final ocorra em território francês. Por exemplo, um produto cujas peças são fabricadas na China, mas montado na França, pode legalmente ostentar o selo, desde que a montagem seja considerada uma transformação substancial . Nesse sentido, segundo matéria publicada no jornal Folha de S.Paulo, ex-funcionários de algumas maisons relataram que peças fundamentais são enviadas da China para a França, onde são montadas para garantir o selo francês. Além disso, há relatos de que alguns artesãos chineses envolvidos nesse processo não possuem formação técnica equivalente à exigida pelas maisons europeias.
O desafio regulatório contemporâneo está em reconhecer que a narrativa de origem também pode ser objeto de regulação. Ao ignorar esse aspecto, corre-se o risco de validar estratégias comerciais que exploram lacunas normativas para sustentar percepções artificiais de qualidade, exclusividade ou autenticidade. Assim, pensar a transparência para além do conteúdo físico do produto e atingir também sua cadeia simbólica é um passo necessário para a evolução do Direito Econômico e do Consumidor frente às novas formas de comunicação mercadológica e à descentralização das cadeias produtivas.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2025-abr-23/luxo-producao-invisivel-e-regulacao-da-narrativa-de-origem-ha-limites-juridicos-para-a-omissao-estrategica/