STF vai reiniciar análise de lei que flexibilizou regras de regularização fundiária

Por José Higídio

Um pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes interrompeu, nesta quinta-feira (22/5), o julgamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei 13.465/2017, que flexibilizou as regras para regularização fundiária.

Com isso, a análise do caso será reiniciada em sessão presencial, ainda sem data marcada.

Antes da interrupção, três ministros haviam votado. O relator, Dias Toffoli, validou todas as regras contestadas. Flávio Dino e Cármen Lúcia concordaram com Toffoli em muitos pontos, mas invalidaram diversos outros trechos, a exemplo da regularização de áreas de até 2,5 mil hectares e a regularização urbana para pessoas de renda média e alta.

Contexto

O colegiado analisava quatro ações contra a lei de 2017. Uma delas foi movida pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pouco após a sanção da norma. As demais são do Partido dos Trabalhadores (PT), do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

Janot argumentou que a lei colocou em risco a preservação do meio ambiente e desconstruiu conquistas na democratização do acesso à moradia e à terra. Ele se baseou em pedidos de 61 entidades de defesa do meio ambiente, convencidas de que a norma causa “ampla privatização” de terras públicas, florestas, mananciais etc.

Já o PT alegou que a lei prejudicou a população de baixa renda e facilitou a concentração fundiária ao mudar e revogar diversos procedimentos de regularização.

De acordo com o partido, um dos trechos da norma, que permitiu a regularização de áreas da União de até 2,5 mil hectares, garante o acesso de grandes invasores (como grileiros e posseiros) a essas terras. A regra anterior limitava a regularização a áreas de até 15 módulos fiscais e não superiores a 1,5 mil hectares.

Outro trecho contestado é o que estabelece um prazo de 15 anos para a consolidação dos assentamentos. Para a legenda, isso é uma “atitude conspiratória contra o programa de reforma agrária”.

O PT ainda apontou violação de isonomia na regularização fundiária urbana, pois a lei prevê diversos requisitos voltados à regularização para baixa renda, mas permite que o poder público estabeleça seus próprios critérios de regularização para alta renda.

Voto do relator

Toffoli explicou que a lei pressupõe a regularização fundiária de ocupações lícitas. “As ilícitas não são passíveis de regularização”, apontou ele.

Além disso, existem alguns requisitos para a regularização: o ocupante precisa ser brasileiro, não pode ser proprietário de outro imóvel rural no país e deve praticar “cultura efetiva” no local ocupado. A ocupação e exploração do imóvel precisa ser “direta, mansa e pacífica”.

“O grande beneficiário do programa de regularização fundiária é a pessoa física ocupante de boa-fé que, com sua família, cultiva a terra”, assinalou.

O magistrado ainda lembrou que a regularização de ocupações maiores — superiores a quatro módulos fiscais — passa por métodos mais rigorosos, com exigência de declaração do ocupante e elaboração de laudo de vistoria.

Ainda segundo Toffoli, o prazo de 15 anos busca desburocratizar os procedimentos de consolidação dos assentamentos, para garantir acesso “à moradia digna e ao próprio sustento” com mais rapidez e eficiência.

Quanto aos diferentes requisitos da regularização urbana, o ministro destacou que a de baixa renda é elaborada e custeada pela prefeitura, enquanto os próprios beneficiários ficam responsáveis por isso na de alta renda. Assim, a previsão de critérios específicos para a baixa renda evita “o favorecimento em duplicidade dos beneficiários”.

O PSOL contestava um trecho específico, que criou um fundo para implementação e custeio do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI), a ser gerido pelo Operador Nacional (ONR) e “subvencionado pelas unidades do serviço de registro de imóveis dos estados e do Distrito Federal”.

O relator considerou que a lei de 2017 apenas preencheu uma lacuna normativa sobre a forma de custeio do registro eletrônico. Para ele, isso gerava atraso na implementação do sistema.

Divergência

Para Dino, que divergiu do relator e foi acompanhado por Cármen, a Lei 13.465/2017 se afastou dos “objetivos sociais” da regularização fundiária e priorizou apenas “o aspecto econômico da terra”.

Segundo ele, a norma foi influenciada pela ideia de que os imóveis irregulares são “capital morto”, ou seja, incapazes de contribuir para a economia nacional. Assim, a regularização buscaria apenas transformar imóveis “ociosos” em ativos financeiros, para aquecer o mercado.

Na sua visão, essa política fundiária é contrária aos preceitos da Constituição e subverte as “funções sociais da propriedade e da justiça social em favor dos interesses econômicos de grileiros e especuladores imobiliários descompromissados com a questão social e os conflitos fundiários”.

O magistrado considerou inconstitucional a regularização de áreas de até 2,5 mil hectares. Ele explicou que a regra anterior garantia regularização à população de baixa renda, como pequenos agricultores familiares e produtores de escala reduzida. Mas a lei de 2017 subverteu essa lógica.

Dino explicou que uma grande propriedade é aquela superior a 15 módulos fiscais. Cada município tem sua própria medida de módulo fiscal, mas ele varia entre cinco e 110 hectares. Ou seja, as mudanças permitiram a regularização de grandes propriedades rurais com até 500 módulos fiscais.

Conforme o Estatuto da Terra, um imóvel rural é considerado latifúndio quando supera em 600 vezes o valor de um módulo rural, que é a área mínima necessária para a subsistência de uma família camponesa e corresponde ao menos a dois hectares. Uma propriedade de 2.500 hectares equivale a 1.250 módulos rurais.

“Não há como justificar, portanto, no contexto da implementação de uma Política Nacional de Regularização Fundiária, a destinação de terras públicas para a criação de novos latifúndios, aumentando ainda mais a concentração de terras em favor dos grandes proprietários rurais”, disse o ministro.

Em vez de beneficiar a agricultura familiar, a medida “amplia ainda mais a concentração de propriedades nas mãos de oligarquias econômicas em prejuízo da redução das desigualdades sociais e regionais e da concretização dos direitos sociais da população campesina”.

Outra regra invalidada pelo magistrado foi a possibilidade de regularização de ocupações localizadas em terras públicas da União na Amazônia Legal por meio de venda direta, sem licitação, com base em “avaliações econômicas absolutamente incompatíveis com o valor de mercado do imóvel rural”.

A lei diz que o preço deve levar em conta o tamanho da área e estar entre 10% e 50% do valor mínimo estabelecido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Antes, havia critérios de antiguidade da ocupação e localização da terra.

Assim, o imóvel público pode ser adquirido por apenas 10% do valor estipulado para fins de reforma agrária — e não do valor de mercado. Pode, ainda, ter um desconto adicional de 20% se o pagamento for à vista em até 180 dias, ou mesmo amortização em até 20 anos.

Conforme estudos apresentados no voto, o poder público deixará de arrecadar R$ 118 bilhões na venda de médias e grandes propriedades ocupadas de forma irregular. Isso porque o valor do hectare adotado pelo Incra foi amplamente reduzido em 2017: caiu para um décimo do valor anterior.

Com isso, terrenos públicos são colocados à venda por menos de R$ 300 o hectare. Um estudo identificou um imóvel rural cuja avaliação baseada na tabela do Incra representava apenas 8,28% do seu valor de mercado.

O ministro lembrou que a renúncia de receitas precisa ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.

“A alienação de imóveis públicos, sem licitação prévia, realizada a preços irrisórios, caracteriza ato lesivo ao patrimônio público nacional, à moralidade administrativa, ao meio ambiente, além de frontalmente contrária às finalidades distributivas e sociais que orientam a política fundiária”, afirmou. Desta forma, “as terras públicas constitucionalmente destinadas à reforma agrária tornam-se vulneráveis à atuação dos grileiros”.

Dino também estabeleceu que a vistoria das condições estabelecidas em um contrato para que o beneficiário possa ter pleno direito de propriedade sobre um imóvel rural só pode ser dispensada se os órgãos e entidades federais conseguirem verificar o cumprimento dessas condições por outros meios.

A vistoria era obrigatória para a liberação dessas condições até a lei de 2017, que passou a permitir a simples comprovação documental. Hoje, a vistoria só acontece se os documentos apresentados forem considerados insuficientes.

O magistrado ressaltou que isso envolve a regularização de ocupações em imóveis rurais alvos de disputas. Para ele, a dispensa de vistoria “não encontra suporte no texto constitucional, considerado o fato de estar em jogo a preservação ambiental do território compreendido na Amazônia Legal, a proteção das comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, a luta contra o trabalho escravo e a defesa do patrimônio nacional”.

O ministro julgou inconstitucional a inclusão de minifúndios (imóveis rurais com área inferior ao valor considerado mínimo para registro) no regime de regularização fundiária urbana.

“O cumprimento da função social da propriedade não condiz com a utilização do território rural para acomodar assentamentos clandestinos e irregulares, com características urbanas, cuja ocupação territorial desordenada somente intensifica a degradação ambiental e inviabiliza a exploração econômica sustentável da terra”, destacou.

Segundo ele, as novas regras de regularização urbana também representaram uma intervenção indevida na competência dos municípios para “a promoção do adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”. Isso porque a lei dispensou a autorização das prefeituras na regularização de conjuntos habitacionais.

Dino ainda entendeu que a regularização fundiária urbana deveria se voltar à população de baixa renda e anulou os trechos que incluíram “pessoas de nível econômico médio ou alto que ocupam imóveis públicos por motivos de conveniência financeira ou por razões de lazer e recreação”.

Ele apontou que a lei permitiu a regularização para renda média e alta sem exigir tempo de ocupação nem impor restrições quanto ao tamanho do imóvel. Até mesmo proprietários de outros imóveis conseguiram o direito de regularizar ocupações informais, mesmo se usando o espaço público para fins comerciais ou industriais.

Por outro lado, as comunidades informais ficaram sujeitas a “requisitos mais rigorosos de regularização” em comparação com a população “de elevado padrão econômico”. O magistrado concordou que houve “clara e patente discriminação negativa contra a população de baixa renda”.

Por fim, Dino declarou a inconstitucionalidade do trecho que estendeu a aplicação das novas regras de regularização fundiária a Fernando de Noronha e outras ilhas costeiras. Na sua opinião, isso colocou em risco “a preservação da fauna, da flora, dos recursos naturais e de todas as funções ecológicas e ecossistemas existentes no arquipélago”.

O ministro lembrou que apenas uma pequena parcela do território de Fernando de Noronha é compatível com a atividade agrícola. A zona agropecuária do arquipélago, destinada ao uso sustentável das comunidades tradicionais, corresponde a 3,9% da área de proteção ambiental. Assim, é “impensável” a “titulação dominial de eventuais invasores” no local.

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ADI 5.771
ADI 5.787
ADI 5.883
ADI 6.787

 

Fonte: https://www.conjur.com.br/2025-mai-23/stf-vai-reiniciar-analise-de-lei-que-flexibilizou-regras-de-regularizacao-fundiaria/