Por Aldem Johnston Barbosa Araújo
Ainda nos tempos da revogada lei 8.666/1993, havia a discussão se o então vigente marco legal das contratações pública poderia ser aplicado em caráter subsidiário às licitações e contratos das concessões de serviços públicos.
Neste particular, Eurico de Andrade Azevedo1 entendia que não era possível aplicar, subsidiariamente, a lei 8.666/1993 aos contratos de concessão toda vez que a lei 8.987/1995 fosse omissa a respeito. Segundo o autor, seria preciso verificar, primeiro, se o dispositivo aplicável seria compatível com as características do instituto, com o caráter especial do seu contrato.
Contudo, o art. 124 da lei 8.666/1993 estabelecida em seu caput que “aplicam-se às licitações e aos contratos para permissão ou concessão de serviços públicos os dispositivos desta Lei que não conflitem com a legislação específica sobre o assunto”.
Para Antônio Flávio de Oliveira, “estabelece-se, neste art. 124, o caráter de subsidiariedade para a aplicação da Lei nº 8.666/1993 às contratações de permissões e concessões nos aspectos em que esta não conflitar com a Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 19952”. Todavia, o autor faz a seguinte ressalva “obviamente, a aplicação da lei geral de licitações e contratos administrativos somente terá lugar quando não for suficiente a disciplina contida na lei de permissões e concessões3” antes de concluir que apenas terá aplicação a Lei nº 8.666/1993 “em que não houver disposição na Lei nº 8.987/1995 e que não esteja em conflito com o sistema presente na legislação especificamente direcionada à disciplina de permissões e concessões4”.
Assim, se já era difícil sustentar entendimentos doutrinários como o de Eurico de Andrade Azevedo quando a lei 8.666/1993 estava em vigor, a partir da redação do art. 186 da lei 14.133/21 (que estabelece que “aplicam-se as disposições desta Lei subsidiariamente à Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, à Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, e à Lei nº 12.232, de 29 de abril de 2010”) nos parece que a questão da possibilidade de a lei de concessões sofrer influxos do Estatuto de Licitações e Contratos vigente em caráter subsidiário é uma questão superada.
Mas, se incontroversa a possibilidade de aplicação subsidiária, fica a dúvida: como deve se dar, na prática, essa aplicação subsidiária das disposições contidas na NLGLC – Nova Lei Geral de Licitações e Contratos ao regime jurídico estabelecido pela lei 8.987/1995?
O art. 186 da NLGLC
A primeira lição para entender o art. 186 da lei 14.133/21 é trazida por Sidney Bittencourt ao esclarecer que “a aplicação subsidiária se dá quando há necessidade de se preencher o vazio de outra lei. Ocorre, portanto, no caso de lacunas ou antinomias5”.
Por seu turno, comentando sobre o dispositivo, Marçal Justen Filho faz o seguinte alerta: “o art. 186 deve ser interpretado com grande cautela (…) somente quando existir uma compatibilidade efetiva entre o regime das referidas leis e as características das relações por elas disciplinadas é que será cabível aplicar as normas da Lei nº 14.133/20216”.
Egon Bockmann Moreira compartilha da mesma preocupação e destaca que “o contrato de concessão ostenta normatividade toda própria, extraordinária no que diz respeito aos demais negócios jurídicos da Administração. A conclusão advém do inciso I do parágrafo único do art. 175 da CF: a lei reclamada pelo texto constitucional tem como finalidade dispor sobre o regime jurídico das concessionárias e permissionárias e o caráter especial de seu contrato. Logo, o regime jurídico e o contrato são fora do comum (e o comum está na Lei nº 14.133/2021).7” Para o autor, “o critério da especialidade constante do §2º do art. 2º da LICC estabelece um conceito relacional. A licitação e os contratos de concessão são especiais em relação aos contratos administrativos ordinários. Mas a aplicação de ambas as leis presume a coexistência harmônica entre as normas (não necessariamente a intransponível revogação), exceto se a matéria for expressamente revogada ou se a nova lei se referir em específico ao tema tratado pela anterior (como se dá em muitos dispositivos da Lei nº 8.987/1995)8”.
Aparentemente, Rafael Sérgio Lima de Oliveira não compartilha da mesma preocupação dos dois juristas paranaenses, vez que, para ele, as leis 8.987/1995, 11.079/04 e 12.232/10 simplesmente “prevalecerão diante dos institutos por elas regulados, mas caso silenciem em relação a algum ponto versado na NLLCA, esta última será aplicada ao caso de forma integrada com a lei específica mencionada no art. 1869”.
E a distinção dos entendimentos declinados acima é importante, pois, se como bem lembra Joel de Menezes Niebuhr, “as leis n. 8.987/1995 e 9.074/1995, que disciplinam as concessões e permissões de serviços públicos, inclusive as pertinentes a licitações, não previram dispensa nem inexigibilidade10”, caso seja aplicado o entendimento de Rafael Sérgio Lima de Oliveira, poderia sim haver, ao menos em tese, uma dispensa de licitação para delegar uma outorga a um concessionário quando, por exemplo, não tiverem surgidos licitantes interessados (art. 75, III, “a” da NLGLC), ao passo que, à luz das lições de Marçal Justen Filho e Egon Bockmann Moreira seria necessário fazer um prévio exame da compatibilidade efetiva da mencionada hipótese de contratação direta com o regime das concessões de serviço público.
O preenchimento de lacunas e afastamento de antinomias depende de um exame da compatibilidade efetiva entre as leis 8.987/1995 e 14.133/21?
Como visto acima no exemplo de uma possível contratação direta no âmbito de uma concessão de serviço público, há uma diferença entre simplesmente aplicar a NLGLC quando a lei 8.987/1995 for lacunosa e fazer um exame de compatibilidade de regimes antes de promover a aplicação subsidiária da NLGLC.
Veja, partindo de duas premissas adotadas pelo professor Floriano de Azevedo Marques Neto no sentido de que “a concessão é um gênero de arranjos contratuais para delegação, aos particulares, do exercício de uma atividade ou de um direito especial com vistas a atingir objetivos públicos11” e que “a concessão é um instrumento de envolvimento dos particulares na consecução de finalidades públicas que necessariamente confere ao concessionário um plexo de direitos e obrigações desuniformes em relação ao conjunto dos indivíduos12” não nos parece que haja uma similaridade abrangente entre as leis 8.987/1995 e 14.133/21 que permita uma aplicação subsidiária da NLGLC em caso de lacuna da lei de concessões sem um prévio cotejo de compatibilidade entre os regimes jurídicos.
Assim, as lições de Marçal Justen Filho e Egon Bockmann Moreira, até pela compatibilidade harmônica ao que Antônio Flávio de Oliveira lecionava sobre a lei 8.666/1993, são de fato mais adequadas para entender como deve se dar a aplicação subsidiária da NLGLC na lei de concessões.
Há algum exemplo de aplicação subsidiária da NLGLC que certamente seria compatível ao regime da lei de concessões?
Como é impossível esgotar o tema, que inclusive é carente de maior aprofundamento por parte da doutrina e da jurisprudência, vamos nos propor aqui a tentar apresentar ao menos uma hipótese em que sim, a lei 8.987/1995 possui uma lacuna que pode ser preenchida pela aplicação subsidiária da lei 14.133/21 sem que exista inviabilidade de compatibilidade entre os regimes.
Essa hipótese de aplicação subsidiária da NLGLC às concessões que propomos aqui é a do regime de nulidades contratuais que, no âmbito da lei 8.987/1995, não é objeto de qualquer tipo de prescrição.
E por que a utilização dos arts. 147 e 148 da NLGLC em caráter subsidiário certamente traria benefícios na aplicação da lei das concessões?
Bom, fazendo novamente remissão às lições de Egon Bockmann Moreira vamos partir dos seguintes pressupostos: primeiro, a concessão comum de serviço público é uma “relação jurídica administrativa típica, unitária e complexa, por meio da qual o Poder Público transfere a execução de determinado serviço público ao particular selecionado em prévia licitação, que assumirá, por prazo certo e por sua conta e risco, a gestão de projeto concessionário autossustentável13”; segundo “a função econômico-social perseguida pela concessão de serviço público presta-se a explicar a unidade do contrato e sua pluralidade de sujeitos e de prestações14”, de modo que “há, portanto, séries de direitos, obrigações, deveres e sujeições em conexão unitária (com fontes diversas), cuja configuração não é dependente em exclusivo da vontade das partes (mas da própria estrutura do negócio). Pois é esse vínculo lógico-jurídico especial que dá autonomia à relação concessionária15” e terceiro “o objeto da concessão de serviço público é a execução da atividade substancial definida pelo ato de outorga: a materialização da obra, a gestão do serviço concedido e sua prestação aos usuários (dare, facere, prestar)16”.
Assim, diante dessa inequívoca relação contratual diferenciada que é estabelecida entre o poder concedente e a concessionária na delegação da outorga para prestação de serviços públicos e, por força do princípio da continuidade do serviço público que estabelece que “o serviço público, sendo a forma pela qual o Estado desempenha funções essenciais ou necessárias à coletividade, não pode parar17”, fazer uso da análise consequencialista prevista nos arts. 147 e 148 da NLGLC quando da aferição da presença de nulidades no bojo das licitações e contratos regidos pela lei 8.987/1995 claramente é algo que é perfeitamente compatível com o regime da lei de concessões.
Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/430179/como-aplicar-a-nova-lei-de-licitacoes-a-lei-das-concessoes