Por Guilherme Carvalho e Luiz Felipe Simões
Nos processos autuados no âmbito do Tribunal de Contas da União visando a uma eventual responsabilização de pessoas físicas ou jurídicas sujeitas à sua jurisdição, em consequência da prática de atos em desconformidade com o ordenamento jurídico vigente, muitos dos quais acarretando prejuízo ao erário, chama a atenção o debate que se instaura acerca da (des)necessária constatação de erro grosseiro na conduta desses responsáveis, bem como quanto ao parâmetro a ser adotado pelo TCU para a sua perfeita caracterização no caso concreto.
O primeiro ponto que tem suscitado discussão naquela Corte de Contas diz respeito à necessidade, ou não, de se investigar a presença de erro grosseiro na atuação de agentes arrolados em processos de tomada de contas especial, como pressuposto necessário à sua condenação em indenizar os cofres públicos.
O entendimento hoje prevalecente no TCU é o de que o artigo 28 do Decreto-lei 4.657/1942 — Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) —, o qual dispõe que o agente público “responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro” (grifos acrescidos pelos colunistas), somente se aplica às hipóteses em que o tribunal apura a responsabilidade administrativa do agente público (órbita do poder sancionador), não cabendo investigar a presença de erro grosseiro – erro praticado com culpa grave segundo o artigo 12, § 1º, do Decreto Federal 9.830/2019 [1] – nas situações em que se examina a responsabilidade financeira desse mesmo agente por dano ao erário.
O principal argumento explicitado nos votos condutores dos acórdãos do TCU, a exemplo do Acórdão 1993/2025-TCU-2ª Câmara, é o de que o artigo 37, § 6º, da Constituição [2], ao tratar da responsabilidade do agente público em ação de regresso, exige a comprovação de dolo ou culpa, esta última sem qualquer gradação, sendo despicienda, portanto, para essa finalidade, a constatação da prática de erro grosseiro e, por consequência, da caracterização de culpa grave (culpa qualificada).
Não concordamos com o entendimento do TCU, pois o legislador infraconstitucional tem competência para definir o tipo (grau) de culpa que se deve perquirir para fins de responsabilidade, sem que isso represente afronta ao texto constitucional, haja vista que este não especifica a intensidade necessária da culpa para que o dever de reparação reste configurado. Ademais, o mencionado § 6º do artigo 37 da Lei Maior versa sobre a hipótese de responsabilização de agentes por danos impingidos a terceiros e não à própria administração pública, e o desfecho que se busca numa tomada de contas especial é justamente a obrigação de o agente reparar o prejuízo causado aos cofres públicos, e não a terceiros.
A corroborar o entendimento ora perfilhado, impende destacar que, exatamente em sentido contrário à posição sustentada pelo TCU, o conteúdo dos artigos 11, § 2º, e 12, §§ 3º e 5º, ambos do Decreto Federal 9.830/2019 [3], evidencia o liame que se faz necessário entre a existência de dano ao erário e a caracterização de dolo ou erro grosseiro (culpa grave) na conduta do agente investigado.
Abstrações
O segundo ponto de debate diz respeito à divergência instalada na jurisprudência do TCU acerca do parâmetro que se deve adotar para aferição de erro grosseiro na atuação do agente público, se é o padrão do homem médio (“administrador médio”), tese sustentada no Acórdão 755/2025-TCU-Plenário, entre outros, ou se é o comportamento do homem com diligência abaixo da do homem médio (“pessoa com nível de atenção aquém do ordinário” ou “pessoa com diligência abaixo do normal”), entendimento esposado no Acórdão 591/2025-TCU-Plenário, entre outros proferidos no mesmo sentido.
Para aquela primeira corrente de pensamento, incorrerá em culpa grave aquele que praticar erro grosseiro, o qual não seria cometido pelo “homem médio”, cuja conduta, portanto, continuará sendo tomada como parâmetro para fins de imputação de responsabilidade. De acordo com a segunda corrente, o mesmo erro grosseiro não seria praticado, agora, pelo “homem com diligência abaixo da do homem médio”, o que significa dizer, em termos práticos, que a referência do “homem médio” continuará sendo determinante para fins de responsabilização perante o TCU, tanto de forma direta (para a primeira corrente) quanto indiretamente (para a segunda corrente).
Dito de outra forma, em ambas as correntes existentes na jurisprudência do TCU, o ponto de partida seguirá sendo o conceito em abstrato de “homem médio”, ou seja, aquele homem diligente e que não comete erros. No contexto da administração pública, ele passou a ser definido, ante a sua infalibilidade, como o super-herói administrativo, e é exatamente isso que continua a inibir e a intimidar o agente público, pois ele sabe que, ao fim e ao cabo, sua conduta será inexoravelmente comparada, direta ou indiretamente, à do irretocável “homem médio”.
Ao tempo em que discordamos do rumo que essa discussão vem tomando naquela Corte de Contas, estamos ora submetendo ao debate um terceiro e novo parâmetro, desvinculado da baliza do “homem médio”, e que, pelas razões a seguir aduzidas, nos parece mais consentâneo com as substantivas modificações introduzidas pela Lei 13.655/2018 no conteúdo da Lindb.
A par da óbvia dificuldade em se mensurar, objetivamente, o quão distante está o “homem médio” daquele “homem com diligência aquém da do homem médio”, não se pode olvidar que o conceito de “homem médio” tem origem no Direito Civil, segundo o qual, para se verificar se existiu, ou não, erro de conduta, e portanto culpa, por parte do agente causador do dano, mister se faz comparar o seu comportamento com aquele que seria normal e correntio em um homem médio, fixado como padrão. Se de tal comparação resultar que o dano derivou de uma imprudência, imperícia ou negligência do autor do dano, nos quais não incorreria o homem padrão, criado in abstracto pelo julgador, caracteriza-se a culpa, ou seja, o erro de conduta.
Entendemos, no entanto, que as alterações promovidas na Lindb, devidamente regulamentadas pelo Decreto Federal 9.830/2019, estão a exigir um novo parâmetro para fins de responsabilização nas esferas administrativa, controladora e judicial. Não por acaso o artigo 20 da Lindb preconiza: “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão” (grifos acrescidos).
E para a efetiva caracterização do erro grosseiro, o novo parâmetro deve ser tomado não de forma abstrata, como sugere o conceito de “homem médio”, mas sempre a partir do caso concreto. É o que se depreende da leitura atenta do artigo 22, § 1º, da Lindb (grifos acrescidos):
Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.
§1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.Nesse contexto, essencialmente pragmático, o novo parâmetro passa a ser o daquele homem (administrador público) que agiria ou tomaria decisões em determinado caso concreto já sabendo, de antemão, os possíveis obstáculos e dificuldades reais que se poderiam apresentar-lhe. E mais, já tendo ele recebido as informações e as orientações necessárias à adoção de uma conduta diligente naquelas circunstâncias.
Caso algum desses elementos não fosse do seu prévio conhecimento, ele estaria sim sujeito a erro, sem que isso lhe gerasse qualquer consequência punitiva ou mesmo condenatória, uma vez que o erro, à luz da Lindb, é tolerável. O que não se admite é o erro grosseiro, isto é, “aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia” (artigo 12, § 1º, do Decreto Federal 9.830/2019).
Só para exemplificar, um fiscal de contrato diligente sob a ótica do “homem médio”, que tem como uma de suas atribuições acompanhar a vigência do contrato por ele fiscalizado, saberia, ou ao menos deveria saber, que não existe direito subjetivo da administração contratante à prorrogação contratual.
Portanto, no caso de contrato envolvendo a prestação de serviços de natureza contínua, o qual pode ser prorrogado sucessivamente, respeitando-se a vigência máxima decenal (artigo 107 da Lei 14.133/2021 [4]), o fiscal de contrato diligente deveria indagar a contratada, com a necessária antecedência, acerca do seu interesse na prorrogação, pois se ela acenasse no sentido da não prorrogação, a Administração necessitaria de tempo hábil para iniciar e concluir novo processo licitatório.
Caso essa indagação ocorresse, por exemplo, 20 dias antes de expirar a vigência inicial do contrato e a resposta da contratada fosse negativa, a administração não disporia desse tempo hábil. A solução seria então celebrar uma contratação emergencial, com todos os custos a ela inerentes, e, em paralelo, dar início a um novo certame licitatório.
Poder-se-ia então dizer que o aludido fiscal de contrato praticou erro grosseiro? A prevalecer, direta ou indiretamente, o parâmetro do “homem médio” como balizador de conduta, muito provavelmente ele seria sim responsabilizado.
À luz do novo parâmetro ora alvitrado, se esse mesmo fiscal de contrato não tivesse sido, quando da sua designação formal, previamente orientado, antecipadamente informado acerca do quantum de antecedência deveria ser observado para provocação da contratada com vistas à eventual prorrogação contratual — tempo hábil para iniciar e concluir novo processo licitatório, caso necessário —, isso seria uma excludente de culpabilidade e a sua conduta, por consequência, não poderia ser configurada como erro grosseiro.
Donde se conclui que caberá ao agente público instado a se manifestar em processo de responsabilização especificar os obstáculos e as dificuldades reais que enfrentou e que teriam tornado inevitável a irregularidade porventura identificada, ou ainda que não recebeu as informações e as orientações necessárias à adoção de uma conduta diligente naquelas circunstâncias em que se encontrava. Exige-se aqui uma defesa técnica efetiva, que apresente as exatas delimitações do caso concreto, com exposição articulada dos fatos e suas peculiaridades.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2025-mai-23/novo-parametro-para-caracterizacao-de-erro-grosseiro/