Opinião: Da inconstitucionalidade da bitributação nas doações a residentes no exterior

A doação é um contrato unilateral, segundo o qual uma pessoa, por mera liberalidade, transfere a outra bens ou vantagens de seu patrimônio pessoal, conforme dispõe o artigo 538 do Código Civil. Sendo certo ainda que, a doação de ascendente a descendentes ou de um cônjuge a outro importa em adiantamento de legítima, ou seja, parte do que lhes cabe por herança, como prevê o artigo 544, do meso código.

Sendo realizada a doação, caberá ao donatário, aquele que foi favorecido por uma doação, o recolhimento do Imposto Causa Mortis e Doações de Qualquer Bens ou Direitos (ITCMD), de competência estadual. Isto porque, a Constituição atribuiu aos estados e ao Distrito Federal o direito de instituir impostos sobre a transmissão causa mortis (herança) e a doação.

Ocorre que nem sempre o doador e o donatário residem no mesmo estado da Federação, assim como, nem sempre o bem doado está no mesmo estado que se encontram o doador e/ou o donatário. Prevendo tal situação, o legislador constituinte estabeleceu no parágrafo 1º do artigo 155 da CF/88 algumas regras para a instituição do ITCMD: 1) relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, compete ao Estado da situação do bem e 2) relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador.

Como são tributadas as doações quando o doador ou o donatário reside no exterior?

Quando o doador é residente e domiciliado no exterior e o donatário residente e domiciliado no Brasil, o donatário está isento do recolhimento do imposto de renda pessoa física, como prevê o artigo 6º, inciso XVI, da Lei 7.713/88. Atualmente, o donatário em solo brasileiro que receber doação de doador residente/domiciliado no exterior também não pode ser compelido a fazer o recolhimento do imposto estadual, isto porque o Supremo Tribunal Federal (Tema 825) julgou inconstitucional a cobrança do ITCMD pelos estados e Distrito Federal, enquanto não houver lei complementar regulando a matéria, em razão do que dispõe o artigo 155, parágrafo 1º, inciso III, alínea “b”, da Constituição.

A situação oposta é mais complexa, o que motivou a publicação do presente artigo, que está na doação internacional com doador situado no Brasil e donatário residente/domiciliado no exterior. Isto porque, atualmente, a referida operação cambial de remessa do dinheiro doado para residente no exterior está sendo duplamente tributada, pela União Federal com a exigência do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) com alíquotas de 15% ou 25% e pelos Estados com a cobrança do ITCMD com alíquotas que podem chegar até 8%, a depender do Estado onde reside o doador.

Explica-se:

O ITCMD é devido ao Estado onde o doador for domiciliado, como autoriza a Constituição (artigo 155, §1º, inciso II), se assim estiver previsto na legislação estadual. A legislação estadual de grande parte dos entes federativos imputa ao donatário (beneficiário da doação) a obrigação de fazer o recolhimento do ITCMD. Em regra, nos casos em que o donatário encontra-se fora de território brasileiro, caberá ao doador fazer o recolhimento, é assim, a título de exemplo, no Estado de São Paulo (artigos 2º, inciso II, 3º, inciso II e 7º, inciso III, parágrafo único, da Lei nº 10.705/2000).

No que tange à possível incidência do tributo federal, o antigo Regulamento do Imposto de Renda (Decreto nº 3.000/99) previa expressamente em seu artigo 690, inciso III, a isenção de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre remessas a título de doação ou herança a residente ou domiciliado no exterior. No entanto, com o advento do novo Regulamento do Imposto de Renda (Decreto nº 9.580/18) restou revogado o regulamento anterior e com ele a isenção retro mencionada, já que o novo regulamento não prevê expressamente a isenção do IRRF nas remessas ao exterior a título doação ou herança.

A partir daí, a Receita Federal, com base no artigo 43 do Código Tributário Nacional e artigo 744, caput e §1º, do Novo Regulamento do Imposto de Renda (RIR/18), passou a exigir o IRRF do doador à alíquota de 15% ou 25% (na hipótese de o beneficiário ser residente ou domiciliado em país ou dependência com tributação favorecida) nas remessas ao exterior a título de doação, conforme entendimento manifestado nas Soluções de Consulta Cosit 309/2018 e Disit/SRRF07 nº 7047/2019.

A jurisprudência sobre o tema está em formação. Para a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, frente à ausência de previsão legal no novo regulamento (RIR/18), que permita a isenção do imposto de renda sobre valores de doação remetidos ao exterior para pessoas físicas, o imposto é devido. De outro lado, para o Ministro Roberto Barroso, do STF, admitir a incidência de imposto de renda sobre a doação acabaria por acarretar indevida bitributação em relação ao imposto causa mortis e doação (ITCMD).

Na nossa interpretação, além de ser vedada a bitributação, é inconstitucional a exigência do IRRF neste tipo de operação, na medida em que a instituição de imposto sobre a doação pela União viola a regra de competência estampada no artigo 155, inciso I, da Constituição, já que, segundo esta, compete, exclusivamente, aos estados ou Distrito Federal instituir impostos sobre transmissão causa mortis e doação.

Ademais, considerando que a incidência do imposto de renda independe da localização, da nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção (artigo 43, §1º, do Regulamento do Imposto de Renda), seria possível concluir que, com base no artigo 6º, inciso XVI, da Lei nº 7.713/88, que a isenção do imposto de renda deve ser aplicada tanto para o donatário que está no Brasil como para aquele situado no exterior, uma vez que se trata do mesmo contrato, com a mesma natureza jurídica.

Muito embora o novo regulamento do imposto de renda não trate especificamente das doações ou heranças remetidas ao exterior, há previsão em seu artigo 35, inciso VII, alínea “c”, que será isento ou não tributável o valor dos bens adquiridos por doação ou herança, de acordo com o disposto no artigo 130, que, por sua vez, faz menção à transferência de direito de propriedade por sucessão, nas hipóteses de herança, legado ou doação em adiantamento da legítima.

Outra questão importante que merece análise mais aprofundada por parte do Judiciário: “As doações para residentes no exterior podem ser classificadas como acréscimo patrimonial de renda ou proventos?”. Isto porque, a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de “renda” ou “proventos de qualquer natureza” são elementos necessários para a ocorrência do fato gerador do imposto de renda, como delimitado pela Constituição (artigo 153, III). Não havendo a ocorrência do fato gerador, não há o que se falar em incidência deste imposto.

Vale lembrar que a renda é o acréscimo patrimonial (riqueza nova) produto do capital (exemplo: renda advinda de aplicações financeiras, juros, aluguéis de bens imóveis), do trabalho (exemplo: remuneração de trabalho, honorários, comissões) ou da combinação de ambos (artigo 43, inciso I, do CTN). Já os chamados Proventos são os acréscimos patrimoniais não compreendidos no produto do capital, ou trabalho ou da combinação de ambos (artigo 43, inciso II, do CTN) tais como: prêmios de loteria, aposentadoria, pensão e benefícios de natureza previdenciária, entre outros.

Por fim, como dito anteriormente, as doações e as heranças já são tributadas pelo Imposto Causa Mortis e Doações de Qualquer Bens ou Direitos (ITCMD), imposto de natureza estadual, e cobrado pelos Entes Federativos com a permissão da Lei Maior. Portanto, concordar com a incidência do imposto de renda nas doações para residente no exterior, além de permitir a indevida bitributação, que é vedada no Brasil, implica em afronta direta à Carta Magna. Defender a Constituição é dever de todos e uma obrigação do STF, sob pena de causar a indesejada e temida insegurança jurídica.

Por fim, é importante ressaltar que há um Projeto de Lei (PL 4031/2021), atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados, cujo objetivo é alterar a Lei nº 13.315/2016 para fins de prever a isenção de IRRF sobre os bens havidos por residentes ou domiciliados no exterior a título de herança ou doação. O Projeto já foi aprovado no Senado e aguarda a apreciação conclusiva das Comissões da Câmara dos Deputados.

Não obstante, até a aprovação definitiva do Projeto de Lei, o IRRF continuará sendo indevidamente exigido pelas instituições financeiras e casas de câmbio nas remessas ao exterior a título de doação ou herança.

A solução cabível para evitar a dupla tributação (IRRF e ITCMD) está na impetração de um mandado de segurança para obtenção de medida liminar antes da remessa do dinheiro ao exterior ou, caso o pagamento indevido tenha sido realizado, a propositura de ação de repetição de indébito para pleitear a restituição do valor, devidamente corrigido, desde que o direito do contribuinte esteja dentro do prazo prescricional de cinco anos.

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Por Gerusa Del Piccolo Araújo de Oliveira, advogada no Cerqueira Leite Advogados.

Thays Silva Feitosa, advogada da área tributária do Escritório de Advocacia Cerqueira Leite Advogados Associados.

Revista Consultor Jurídico