Opinião: Conselho Federativo do IBS viola Federalismo Fiscal da Constituição?

Este texto marca o início de minha participação, junto com o amigo e companheiro no Departamento de Direito do Estado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor Sérgio André Rocha, à coluna Justiça Tributária. Será um prazer dividir este espaço com Raul Haidar e o amigo professor Fernando Facury Scaff às segundas-feiras.

Para esta contribuição inaugural, é quase impossível não tratar do tema do momento, ou seja, a reforma tributária, cujo relatório foi publicado pelo Grupo de Trabalho (GT) da Câmara dos Deputados, criado especificamente para o exame das PECs 45 e 110, ambas de 2019.

Arrisco dizer que estamos num dos momentos mais conflituosos do cenário tributário no Brasil, com índices de litigiosidade altíssimos. Por aqui tento indicar algumas das razões para o caos tributário e a gigantesca litigiosidade que assola não só o poder judiciário e os entes federativos, mas especialmente os contribuintes do país. Não temos a pretensão de esgotar esta vastíssima temática das reformas tributária e do processo tributário, mas sinalizar que o sistema tributário brasileiro sucumbiu, arrastando com ele as empresas, as finanças públicas e, também, a prestação jurisdicional.

Estima-se que o contencioso tributário brasileiro alcançou R$ 5,44 trilhões em 2019. Este valor torna-se ainda mais expressivo quando avaliado em termos do Produto Interno Bruto (PIB), principal medida de desempenho econômico de um país, alcançando 75% do PIB, em 2019.

Segundo dados constantes do relatório Justiça em Números, historicamente as execuções fiscais são o principal fator de morosidade do Poder Judiciário. No ano de 2022, o referido relatório[1] apontou números expressivos, a saber, 35% do total de casos pendentes corresponde a execuções fiscais, algo em torno de 30 milhões de processos, sendo também 65% das execuções pendentes, com taxa de congestionamento de 90%. Significa dizer que, em um universo de 100 processos, apenas 10 foram baixados em 2021.

O último estudo sobre o custo da execução fiscal realizado pelo TJ-DF (Tribunal de Justiça do Distrito Federal), em projeto piloto para aplicar métodos adequados para a solução de conflitos tributários, constatou que cada processo custa em média R$ 28 mil, ou seja, esse passivo processual tributário custa ao menos R$ 1 trilhão ao país.

O Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro, realizado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) na 5ª Edição do Justiça Pesquisa, por mim coordenado quando então secretário especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do CNJ na gestão do ministro Luiz Fux, através de brilhante pesquisa do Insper, traçou de forma inédita o cenário da litigiosidade tributária judicial no Brasil.

Embora o IPTU seja o tributo mais litigado, o valor dos créditos tributários é diminuto, se considerados individualmente. Contudo, os tributos onde a litigiosidade é marcante são os sobre o consumo, ICMS e PIS/Cofins, o que intuitivamente já se previa.

Os números falam por si e revelam que estamos longe da segurança jurídica e da simplicidade do nosso sistema tributário[2]. A primeira conclusão a que chegamos é que o caos tributário não interessa ao Poder Judiciário e tão pouco ao Estado, onerados em seu orçamento para manter uma gigantesca e ineficiente máquina de cobrança de tributos.

A proposta de reforma do processo tributário, que tive a honra de relatar na Comissão de Juristas, presidida pela professora, tributarista e ministra do STJ Regina Helena Costa, criada pelo Ato Conjunto Senado/STF nº 1/2022, endereça o problema pelo ângulo processual, mas não é suficiente.

Apresentamos algumas reflexões preliminares sobre um dos tópicos que foi pouco debatido até o momento, mas que guarda grandes complexidades, ainda sem respostas muito claras, pois o relatório não traz propostas concretas, mas premissas para um desenho legislativo, sendo em alguns casos simplesmente descritivo dos problemas e divergências existentes.

Conforme explicitado pelo relatório, a análise das PECs nºs 45 e 110, de 2019, resultou em um longo processo de debate conjunto das duas Casas Legislativas, podendo-se dizer que suas últimas versões — o substitutivo apresentado à Comissão Mista Temporária da Reforma Tributária em 12 de maio de 2021, e o substitutivo à PEC nº 110, de 2019, trazido à CCJ do Senado em 16 de março de 2022 — possuem mais semelhanças do que assimetrias.

Trazemos à baila o tema da Administração e Gestão do IBS. Segundo o substitutivo da Comissão Mista, a gestão e administração seriam compartilhadas entre as três esferas federativas, nos termos de lei complementar. Já o substitutivo da PEC nº 110 previa que a gestão e administração do IBS se daria a cargo do Conselho Federativo do Imposto sobre Operações com Bens e Prestações de Serviços, entidade pública de regime especial, dotada de independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira, cuja instância máxima de deliberação e autoridade orçamentária seria composta por todos os estados, o Distrito Federal e todos os municípios, com votos distribuídos de forma paritária.

O grupo de trabalho optou por um modelo de gestão do IBS no sistema dual, o que leva a decisões relevantes quanto ao papel que as administrações tributárias subnacionais terão neste novo modelo. Sendo o IBS um tributo de âmbito nacional, que demanda a participação de todos os entes federativos para seu funcionamento, não se pode restringir a atuação das Fazendas Públicas estaduais e municipais, mas sim pensar numa nova dimensão de atuação, mais abrangente e integrada. A dúvida é se este novo formato respeita o Federalismo Fiscal desenhado pela Constituição de 1988.

Um primeiro questionamento é se seria possível, em razão de competências que precisam ser exercidas de forma uniforme em âmbito nacional, como a administração da arrecadação e a regulamentação do tributo, a criação de um órgão nacional com esta envergadura institucional.

Por outro lado, resta claro que o IBS com gestão compartilhada por estados, DF e municípios exigirá uma gestão e administração conjunta dessas esferas federativas, de forma a garantir a distribuição dos recursos conforme o princípio do destino, a unicidade da regulamentação do imposto, hoje caótica tanto a nível estadual como municipal, e a ágil devolução dos créditos aos contribuintes.

Um segundo é se seria possível a formulação de política tributária própria, nos interesses da respectiva unidade federativa. Aqui talvez esteja a maior mudança, com impactos orçamentários significativos, pois não permitiria a concessão de benefícios e incentivos fiscais.

Se por um lado tem o potencial de acabar com uma guerra fiscal fratricida, por outro tangencia o poder de tributar inaugurado pelo Federalismo Fiscal com a CRFB de 1988. Este é um tema caro num país com tantas diversidades regionais e econômicas. O que deve ser pesado é se a formulação de políticas tributárias em âmbito nacional de base sobre o consumo ampliada será capaz de dar cumprimento ao artigo 3°, III, ao dispor: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (…) II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;”.

Terceiro, há vantagens latentes para os contribuintes numa regulamentação única para todo o território nacional, com a possibilidade de simplificação das obrigações acessórias. Segundo dados do Doing Business, do Banco Mundial, o Brasil é o campeão em horas demandadas para a apuração de tributos, consumindo, em média, 2.038 horas por ano das empresas nacionais.

Existe algum parâmetro institucional para o Conselho Federativo do IBS? A competência normativa nacional centralizada guarda precedentes com a criação do CNJ, pela Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, no bojo da reforma do Poder Judiciário. Com as suas competências elencadas no artigo 103-B da Constituição e complementadas pelo Regimento Interno do órgão (Resolução nº 67, de 3 de março de 2009), tem entre as suas principais atribuições os controles administrativo, financeiro e disciplinar do Poder Judiciário, com a exceção do STF (ADI nº 3.367/DF). Além do mais, tem as funções de planejar, auxiliar e acompanhar políticas públicas voltadas à melhoria dos serviços disponibilizados pelo Judiciário. E mais, as resoluções do CNJ são atos normativos primários segundo a Suprema Corte (Ação Declaratória de Constitucionalidade 12-6/Distrito Federal).

Portanto, já existe parâmetro constitucional para a criação de um órgão nacional, tal qual o Conselho Federativo do IBS. Destarte, optando-se por um IBS Dual, não restará outra alternativa à legislação unificada. Assim, a questão prévia é que se torna mais relevante, ou seja, se admitido que a criação do IBS Dual não viola o Federalismo Fiscal, a conclusão lógica é que será necessária a criação de um órgão nacional para gerenciar e administrar o novo imposto.

Por fim, seguimos o tortuoso caminho de uma reforma tributária de vital relevância desacompanhada do texto base para debates. O pior, se efetivamente for votada na primeira semana de julho, tal qual anunciada pela imprensa, a sociedade não terá tempo para avaliar, criticar e propor alterações ao texto.


[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números. Brasília, DF: CNJ, 2022. Disponível aqui:. Acesso em: .4.set.2022, p. 170-171.

[2] Faria, Luiz Aberto Gurgel de. Sistema tributário nacional: a segurança jurídica e a contribuição que o PLS nº 298/2011 pode emprestar na busca pela simplicidade. In: Segurança jurídica para o desenvolvimento econômico: análises de impacto legislativo. Coord. Kassio Nunes Marques, Paulo Moura Ribeiro. Rio de Janeiro: ed. J&C: Justiça & Cidadania, 2022, p. 114.

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Por Marcus Livio Gomes, professor associado de Direito Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e pesquisador associado da Universidade de Londres.

Revista Consultor Jurídico