A tributação sobre a atividade rural, como se sabe, possui suas peculiaridades. Trata-se de um regime tributário diferenciado. O motivo? São vários, mas podemos elencar alguns, à título de introdução. Vejamos, por exemplo, a previsão do artigo 187 da Constituição de 1988, que estabelece preceitos voltados para a política agrícola e, logo no seu inciso I, prevê a necessidade de observar os instrumentos creditícios e fiscais para que sua finalidade seja atingida. Assim, como sustenta Loubet (2017, p. 75), é a comprovação de que o constituinte tomou como certo a necessidade de manipulação da tributação sobre a atividade rural como um dos meios para atingir os objetivos traçados pela Constituição.
E assim o é, pois, a atividade rural (aqui entendida como aquela definida pelo artigo 2° da Lei n° 8023/1990) [1] fornece um dos pilares básicos para que a pessoa viva de forma digna, que é o alimento. Portanto, em prol, em especial, do princípio da dignidade da pessoa humana, a atividade rural deve ser menos onerada, a fim de que tenhamos mais alimentos, com um custo menor. Não só isso.
Como ensina Corrozza (apud, ROCHA, 1994, p. 35-43), sobre referida atividade existe a “agrariedade”, que é o termo utilizado para explicar a sua sujeição a determinados riscos que fogem do controle humano. Ou seja, além dos riscos normais de todo e qualquer negócio, há riscos climáticos, motivo pelo qual é necessário um tratamento jurídico diferenciado, e isso não é, como escreve Calcine (2023, p. 25), privilégio, mas, se não, apenas cumprir o que determina a Constituição.
Enfim, vários são os motivos para que a tributação sobre a atividade rural seja diferenciada e, essa diferenciação é percebida, por exemplo, quando da alienação de imóvel rural por pessoa física e a incidência do conhecido ganho de capital. Isso porque, em se tratando de alienação de imóvel urbano, a regra, de forma simplória, é: a diferença positiva entre o custo da aquisição (valor pago) e o valor da alienação (valor da venda [2].
Sobre essa diferença positiva, incidir-se-á a alíquota de 15% a 22,5% [3], a depender do saldo positivo. Entretanto, em se tratando de imóvel rural, a forma de apuração é modificada, consoante prevê o artigo 19 da Lei n° 9.393/1996. Vejamos:
Artigo 19. A partir do dia 1º de janeiro de 1997, para fins de apuração de ganho de capital, nos termos da legislação do imposto de renda, considera-se custo de aquisição e valor da venda do imóvel rural o VTN declarado, na forma do artigo 8º, observado o disposto no artigo 14, respectivamente, nos anos da ocorrência de sua aquisição e de sua alienação.
Ou seja, para as operações efetivadas a partir de 1° de janeiro de 1997, considerar-se-á como sendo o custo de aquisição e o custo de alienação, o VTN (Valor da Terra Nua) declarado no Diat — Documento de Informação e Apuração do ITR (Imposto Territorial Rural) no ano da compra e venda, respectivamente.
O VTN, como determina a legislação [4], é declarado ano a ano pelo próprio contribuinte, e representa o valor do imóvel, excluídos os valores relativos a construções, instalações, benfeitorias, culturas permanentes ou temporárias e etc [5]. Enfim, é o valor da terra sem levar em consideração qualquer outro fator e/ou investimento. Essa, em regra, é a forma de apuração do ganho de capital. Mas e os valores referentes as benfeitorias, como são tributados?
Da tributação dos valores recebidos a título de benfeitorias
Pois bem.
Como constatado, na alienação de imóvel rural por pessoa física, considera-se como sendo custo de aquisição o VTN declarado no Diat no ano da compra, e o valor da alienação, o declarado no ano da venda. Sobre o saldo positivo, incidir-se-á o ganho de capital, no mesmos percentuais previstos no artigo 21 da Lei n° 8.981/1995 (15% a 22,5%).
Diante deste cenário, duas situações surgem: a primeira, é a tributação da terra nua pelo ganho de capital, cuja base de cálculo, como dito, é o VTN.
A segunda é a tributação dos demais valores recebidos na operação, referentes as benfeitorias. Porém, pergunta-se: como tributá-los? Como sendo receita da atividade rural? Ou os inclui na apuração do ganho de capital e os tributam como tal?
Se os valores recebidos pelas benfeitorias forem considerados receitas da atividade rural, tais quais serão tributados ou pelo lucro real (apuração mediante escrituração no livro-caixa), ou pelo lucro presumido (presume-se renda de 20% sobre a receita bruta). Porém, se o valor recebido pelas benfeitorias não for considerado receita da atividade rural, tal qual deverá somar-se ao ganho de capital, tributando a diferença positiva entre 15% a 22,5%. Dito isso, qual é a forma correta, então?
Segundo a Instrução Normativa n° 84/2001, depende. Depende de como as benfeitorias foram classificadas. Isto é: os valores gastos com as benfeitorias foram deduzidos como custos ou despesas da atividade rural? Se sim, serão considerados receitas da atividade rural e tributadas como tal (lucro real ou presumido). Caso contrário, deverão ser computados no ganho de capital. É essa a previsão normativa, vejamos:
“Artigo 9º Na apuração do ganho de capital de imóvel rural é considerado custo de aquisição o valor relativo à terra nua.
§1º Considera-se valor da terra nua (VTN) o valor do imóvel rural, nele incluído o da respectiva mata nativa, não computados os custos das benfeitorias (construções, instalações e melhoramentos), das culturas permanentes e temporárias, das árvores e florestas plantadas e das pastagens cultivadas ou melhoradas.
§2º Os custos a que se refere o §1º, quando não tiverem sido deduzidos como despesa de custeio, na apuração do resultado da atividade rural, podem ser computados para efeito de apuração de ganho de capital.
Artigo 19. Considera-se valor de alienação:
[…]
VI – no caso de imóvel rural com benfeitorias, o valor correspondente:
a) exclusivamente à terra nua, quando o valor das benfeitorias houver sido deduzido como custo ou despesa da atividade rural;
b) a todo o imóvel alienado, quando as benfeitorias não houverem sido deduzidas como custo ou despesa da atividade rural.
§1º Tratando-se de imóvel rural adquirido a partir de 1997, considera-se valor de alienação da terra nua:
I – o valor declarado no Diat do ano da alienação, quando houverem sido entregues os Diat relativos aos anos de aquisição e alienação;
II – o valor efetivamente recebido, nos demais casos.
§2º Na alienação dos imóveis rurais, a parcela do preço correspondente às benfeitorias é computada:
I – como receita da atividade rural, quando o seu valor de aquisição houver sido deduzido como custo ou despesa da atividade rural;
II – como valor da alienação, nos demais casos.”
Portanto, segundo essas previsões, somente será considerada receita da atividade rural se referidas benfeitoras foram deduzidas como custos ou despesas, caso não, integrarão a base de cálculo do ganho de capital. Acontece que essa condicionante (dedução como despesa) é indevida. Isso porque, a base de cálculo do ganho de capital, como expressa o artigo 19 da Lei n° 9393/1996, é o VTN (Valor da Terra Nua), e ponto. Incluir os valores recebidos pela venda das benfeitorias não é legítimo, eis que, ao assim proceder, estar-se-á alterando (aumentando) a base de cálculo de um tributo, através de Instrução Normativa, o que não é legítimo.
Ora, como bem sustenta Schourei (2016, p. 100), a fonte para instituição e majoração de tributos, por excelência, é a lei ordinária, conforme se refere o artigo 150, inciso I da CF/88. Essa instituição/criação de tributo, de acordo com Machado (2015, p. 83), é a exigência de que todos os elementos da obrigação tributária principal residam na lei, não podendo, inclusive, delegar tão função a regulamentos. E dentre os elementos da obrigação tributária, temos, por uma questão lógica e, imprescindível, até, a base de cálculo.
Como auferir o valor devido do tributo, sem ter o quantum sobre qual incidir-se-á a alíquota? Carvalho (2018, p. 342), diz mais: “a base de cálculo é fator imprescindível para a fisionomia de qualquer tributo”. Se assim o é, não pode uma Instrução Normativa, que não é Lei em sentido formal (MACHADO, 2015, p. 73) e, sim, instrumento secundário [6] e, portanto, tem sua juridicidade condicionada as disposições legais (FILHO, 2019, p. 90 ), aumentar o tributo — eis que, reitera-se: apenas lei pode fazê-lo. Inclusive, vale transcrição da ementa de um julgado do TRF4 que se posicionou no mesmo sentido:
“TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA PESSOA FÍSICA. GANHO DE CAPITAL. ALIENAÇÃO DE IMÓVEL RURAL. CUSTO DE AQUISIÇÃO E VALOR DE VENDA. ILEGALIDADE DA INSTRUÇÃO NORMATIVA SRF Nº 84/2001. LEI Nº 9.393/1996, ARTIGOS 14 E 19. 1. […]. 2. […]. 3. […]. 4. […]. 5. A Instrução Normativa SRF nº 84/2001 ainda estabelece outro requisito não previsto em lei, determinando que os custos das benfeitorias (construções, instalações e melhoramentos), das culturas permanentes e temporárias, das árvores e florestas plantadas e das pastagens cultivadas ou melhoradas, quando não tiverem sido deduzidos como custo ou despesa da atividade rural, são computados para efeito de apuração de ganho de capital. 6. Havendo definição expressa nos artigos 14 e 19 da Lei nº 9.393/1996 quanto à base de cálculo do ganho de capital – o valor da terra nua declarado ou o valor arbitrado, quando não houver declaração – sem a imposição de deduzir as benfeitorias no custeio da atividade rural, também viola o princípio da legalidade o artigo 9º, §2º, e o artigo 19, inciso VI e §§1º e 2º da IN SRF nº 84/2001”. (TRF-4 – APELREEX: 50020989020124047116 RS 5002098-90.2012.404.7116, relator: JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Julgamento: 15/04/2015, 1ª TURMA).
Portanto, essas disposições contidas em Instrução Normativa violam o princípio da legalidade, pois, na ausência de dedução dos valores como despesas, serão eles acoplados a base de cálculo do ganho de capital, o que implica, evidente, em aumento da carga tributária — possibilidade essa reservada a lei em sentido estrito.
Conclusão
Os instrumentos secundários, ou derivados (como as Instruções Normativas), que, como dito, são aqueles veículos que introduzem normas no sistema, porém, que ficam condicionadas às disposições introduzidas por veículos primários, não podem instituir novos direitos e deveres, senão, apenas, realizar os comandos que a lei autoriza, sob pena de inconstitucionalidade.
E a Instrução Normativa n° 84/2001 assim o fez, isto é, institui novos deveres para que o contribuinte possa se valer da apuração do ganho de capital na alienação de imóvel rural. Na verdade, referida IN alterou, substancialmente, a base de cálculo do imposto, fazendo-a aumentar de forma manifesta, acaso o interessado não cumpra novos deveres por ela instituídos, que não previstos em lei, motivo pelo qual as condicionantes por ela impostas são indevidas, diante da violação ao princípio da legalidade estrita.
Referências
CALCINI, Fábio Pallaretti. Tributação no agronegócio – Algumas reflexões. Londrina/PR: Thote, 2023.
CARVALHO, Aurora Tomazini de. Teoria Geral do Direito. s/d. Disponível em: https://tede.pucsp.br/bitstream/handle/8649/1/Aurora.pdf. Acessado em: 08 jul. 2023.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
_________. O princípio da segurança jurídica em matéria tributária. Revista da Faculdade de Direito, Universdade de São Paulo, [S. l.], v. 98, 2003. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67584. Acessado em: 06 jul. 2023.
FILHO, Ben-hur Carvalho Cabrera Mano. Tributação da Atividade Rural. São Paulo: Almedina, 2019.
LOUBET, Leonardo Furtado. Tributação Federal no Agronegócio. 1. ed. São Paulo: Noeses, 2017.
MACHADO, Hugo de Brito. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2015.
ROCHA, Olavo Acyr de Lima. Atividade Agrária. Conceito Clássico. Conceito Moderno de Antônio Corrozza. Revista da Faculdade da Direito, Universidade da São Paulo, 1994, 35-43. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67431. Acessado em: 30 jun. 2023.
SCHOUREI, Luis Eduardo. Direito Tributário. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016
[1] Artigo 2º Considera-se atividade rural:
I – a agricultura;
II – a pecuária;
III – a extração e a exploração vegetal e animal;
IV – a exploração da apicultura, avicultura, cunicultura, suinocultura, sericicultura, piscicultura e outras culturas animais;
V – a transformação de produtos decorrentes da atividade rural, sem que sejam alteradas a composição e as características do produto in natura, feita pelo próprio agricultor ou criador, com equipamentos e utensílios usualmente empregados nas atividades rurais, utilizando exclusivamente matéria-prima produzida na área rural explorada, tais como a pasteurização e o acondicionamento do leite, assim como o mel e o suco de laranja, acondicionados em embalagem de apresentação.
[2] Artigo 3, §2º da Lei n° 7.713/1988: Integrará o rendimento bruto, como ganho de capital, o resultado da soma dos ganhos auferidos no mês, decorrentes de alienação de bens ou direitos de qualquer natureza, considerando-se como ganho a diferença positiva entre o valor de transmissão do bem ou direito e o respectivo custo de aquisição corrigido monetariamente, observado o disposto nos artigos 15 a 22 desta Lei.
[3] Artigo 21 da Lei n° 8.981/1995: O ganho de capital percebido por pessoa física em decorrência da alienação de bens e direitos de qualquer natureza sujeita-se à incidência do imposto sobre a renda, com as seguintes alíquotas:
I – 15% sobre a parcela dos ganhos que não ultrapassar R$ 5.000.000,00;
II – 17,5% sobre a parcela dos ganhos que exceder R$ 5.000.000,00 e não ultrapassar R$ 10.000.000,00;
III – 20% sobre a parcela dos ganhos que exceder R$ 10.000.000,00 e não ultrapassar R$ 30.000.000,00; e
IV – 22,5% sobre a parcela dos ganhos que ultrapassar R$ 30.000.000,00.
[4] Artigo 8º da Lei n° 9.393/96: O contribuinte do ITR entregará, obrigatoriamente, em cada ano, o Documento de Informação e Apuração do ITR – Diat, correspondente a cada imóvel, observadas data e condições fixadas pela Secretaria da Receita Federal.
§1º O contribuinte declarará, no Diat, o Valor da Terra Nua – VTN correspondente ao imóvel.
[5] O inciso I, do §1°, do artigo 10, da Lei n° 9393/1996, estabelece o que deve ser excluído para o fim de apurar o valor do VTN.
[6] Segundo Paulo de Barros Carvalho, os instrumentos secundários, ou derivados, são aqueles veículos que introduzem normas no sistema, porém, que ficam condicionadas às disposições introduzidas por veículos primários (como as Instruções Normativas), não podendo instituir novos direitos e deveres, senão, apenas, realizar os comandos que a lei autoriza (apud, CARVALHO, A. T., s/d, p. 503).
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Por Leonardo Scopel Macchione de Paula, pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Damásio Educacional e em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), pós-graduando em Prática Tributária e Empresarial pelo Instituto Goiano de Direito (IGD), mestrando no Instituto Brasileiro de Ensino (IDP), professor universitário de Direito Contratual, professor em curso preparatório para primeira fase da OAB no Dr. Aprova e sócio do escritório Macchione & de Paula Advogados Associados.
Revista Consultor Jurídico