De acordo com a legislação brasileira, na apuração do ganho de capital serão consideradas as operações que importem alienação, a qualquer título, de bens ou direitos, inclusive na doação. É o que se extrai do artigo 3º, § 3º, da Lei nº 7.713/88, bem como do artigo 23, § 2º, inciso II, da Lei nº 9.532/97. In verbis:
“Art. 3º O imposto incidirá sobre o rendimento bruto, sem qualquer dedução, ressalvado o disposto nos arts. 9º a 14 desta Lei.
[…]
§ 3º. Na apuração do ganho de capital serão consideradas as operações que importem alienação, a qualquer título, de bens ou direitos ou cessão ou promessa de cessão de direitos à sua aquisição, tais como as realizadas por compra e venda, permuta, adjudicação, desapropriação, dação em pagamento, doação, procuração em causa própria, promessa de compra e venda, cessão de direitos ou promessa de cessão de direitos e contratos afins.
Art. 23. Na transferência de direito de propriedade por sucessão, nos casos de herança, legado ou por doação em adiantamento da legítima, os bens e direitos poderão ser avaliados a valor de mercado ou pelo valor constante da declaração de bens do de cujus ou do doador.
[…]
§ 2º. O imposto a que se referem os §§ 1º e 5º deverá ser pago:
[…]
II – pelo doador, até o último dia útil do mês-calendário subseqüente ao da doação, no caso de doação em adiantamento da legítima;”
Nesse sentido, se, na doação, o bem ou direito for transmitido por um valor maior do que o registrado na última declaração de Imposto de Renda do doador, a teor do disposto nas leis supracitadas, haverá apuração do ganho de capital e, consequentemente, incidência do IR.
Ocorre que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao analisar a questão, tem formado entendimento de que não incide Imposto de Renda para o doador neste caso.
Isso porque, em se tratando de doação, isto é, transferência gratuita (não onerosa) de bens a outrem, não há acréscimo patrimonial para o doador. Pelo contrário, as vantagens são atribuídas apenas ao donatário (quem recebe), enquanto que o doador sofre a redução do seu patrimônio.
O entendimento do STF é de que o Imposto de Renda incide sobre o acréscimo patrimonial disponível econômica ou juridicamente. Logo, se, com a doação, o doador se desfaz de seu patrimônio, este fato jurídico não é gerador de aquisição de disponibilidade econômica. Vejamos:
“Direito tributário. Agravo interno em recurso extraordinário com agravo. Imposto sobre a renda. Ganho de capital. Antecipação de legítima. Ausência de acréscimo patrimonial. Vedação à bitributação. […] 2. Esta Corte possui entendimento de que o imposto sobre a renda incide sobre o acréscimo patrimonial disponível econômica ou juridicamente (RE 172.058, Rel. Min. Marco Aurélio). Na antecipação de legítima, não há, pelo doador, acréscimo patrimonial disponível. Acórdão alinhado à jurisprudência desta Corte. 3. O constituinte repartiu o poder de tributar entre os entes federados, introduzindo regras constitucionais, que, sobretudo no que toca aos impostos, predeterminam as materialidades tributárias. Esse modelo visa a impedir que uma mesma materialidade venha a concentrar mais de uma incidência de impostos de um mesmo ente (vedação ao bis in idem) ou de entes diversos (vedação à bitributação). Princípio da capacidade contributiva. 4. Admitir a incidência do imposto sobre a renda acabaria por acarretar indevida bitributação em relação ao imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCMD). 5. Agravo interno a que se nega provimento.” (STF, ARE 1387761 AgR, órgão julgador: 1ª Turma, relator: ministro Roberto Barroso, julgamento: 22/2/2023, publicação: 1/3/2023)
Assim, a jurisprudência vem sendo firmada no sentido de que tributar imposto de renda do doador, a título de ganho de capital, unicamente, porque o valor de doação é superior àquele registrado na declaração de Imposto de Renda fere o fato gerador do Imposto de Renda previsto no artigo 43 do Código Tributário Nacional.
“Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:
I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.”
Dentro desse contexto, entende-se que a previsão do referido artigo 3º, § 3º, da Lei nº 7.713/88 e artigo 23, § 2º, inciso II, da Lei nº 9.532/97 também violam os artigos 145, §1º; 146, inciso III, alínea “a”; e 153, inciso III, da Constituição, pois, ao considerarem a doação como modalidade de alienação a qualquer título, configurando acréscimo patrimonial para o doador, extrapolam o conceito de renda e proventos de qualquer natureza definido constitucionalmente.
“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
I – impostos;
II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;
III – contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.
§ 1º. Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
Art. 146. Cabe à lei complementar:
[…]
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
[…]
III – renda e proventos de qualquer natureza;”
Cumpre ressaltar que os fatos geradores dos tributos, inclusive os do Imposto de Renda, devem ser previstos em lei complementar; de modo que referidas leis, na qualidade de leis ordinárias, não possuem tal prerrogativa.
Por fim, importante considerar que, admitir a incidência de imposto de renda na hipótese de doação de bens e direitos acabará por gerar bitributação, o que, novamente, está em consonância com o entendimento do STF, nos termos da ementa colacionada acima.
Isso porque, além dos 15% de Imposto de Renda sobre o “acréscimo patrimonial”, haverá, ainda, os 4% sobre o valor total da alienação, a título de ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação), caracterizando bis in idem, o que é vedado pela legislação pátria.
A questão ainda está longe de ser pacificada nos tribunais, porém a jurisprudência que vem sendo formada pelo STF, além de todas as outras discussões doutrinárias e legislativas, dão boa base para refutar a incidência de Imposto de Renda para o doador em situações análogas, motivo pelo qual faz-se de suma importância o acompanhamento de assessoria jurídica capacitada.
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Por Vitória Gabriella Wasques, advogada no escritório Pádua Faria Advogados, graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Franca, pós-graduanda em Direito Aplicado ao Agronegócio pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC/PR), pós-graduanda em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP/USP).
Revista Consultor Jurídico