Por Adriana Aguiar
Projeto permite a anulação de cláusula que viole a função social do contrato
O projeto que pretende alterar o atual Código Civil traz novidades que impactam os contratos empresariais. Uma regulamentação mais clara sobre a divisão de ativos na saída de sócios de sociedades limitadas é destacada por especialistas entre os pontos positivos – eliminando a judicialização. Outras mudanças propostas, porém, como a anulação de cláusula que contrarie a função social do contrato, preocupam advogados de empresas por permitirem uma maior interferência do Judiciário nos negócios.
Apresentado ao Plenário do Senado no dia 17 de abril, o anteprojeto foi elaborado por uma comissão com 38 de juristas, criada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e liderada pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em oito meses, foram analisados mais de 2 mil artigos sobre familia, sucessão, direito digital e contratos. Agora, pontos podem ser incluídos, alterados ou excluídos pelos parlamentares.
A previsão de anulação da cláusula contratual que violar a chamada “função social do contrato” é o ponto mais crítico do anteprojeto de lei, segundo especialistas. Tais dispositivos buscam proteger a dignidade da pessoa humana e priorizar o interesse público sobre o privado.
A função social do contrato já havia sido introduzida no Código Civil de 2002. Contudo, seu alcance foi limitado pela Lei da Liberdade Econômica (nº 13.874, de 2019), criada com o objetivo principal de reduzir a burocracia nas atividades econômicas.
No anteprojeto, a possibilidade de anulação desse tipo de cláusula está no parágrafo 2º artigo do artigo 421 do relatório final do anteprojeto. Mas todo o artigo 421, do A ao F, fala da função social do contrato.
“O discurso é por um código mais humano, mas humano é cumprir a palavra dada” -Paulo Doron
De acordo com o professor de Direito Privado da Escola de Direito da FGV, em São Paulo, Paulo Doron, esse conceito de função social do contrato é muito vago e não existe em nenhum outro país, “o que traz insegurança”. Para ele, os contratos têm que ser cumpridos da forma como foi estabelecido e essa argumentação dá margem para que sejam anulados no Judiciário. “O discurso é por um código mais humano, mas humano é cumprir a palavra dada”, diz.
O anteprojeto, na opinião de Doron, sofreu influência de pensamentos consumeristas na sua elaboração, o que não faz sentido em contratos entre empresas, onde não existem hipossuficientes como o consumidor em relação a companhias.
Fábio Floriano Melo Martins, presidente do Instituto de Direito Privado (IDIP) e professor na FGV Law, afirma também estar preocupado com a ênfase dada à função social do contrato. “Em um contrato há um equilíbrio de forças. Cláusulas mais favoráveis a um lado, outras a outro. Se você anula uma cláusula pode desbalancear o contrato inteiro”, diz.
Outro ponto que merece atenção, dizem, é a criação de um contrato próprio para a prestação de serviços por meio de plataformas digitais, como Uber e Ifood. A previsão está no artigo 609, do A ao G.
Doron aponta que, em geral, modelos de contrato só são estabelecidos em lei após serem frequentemente usados pela sociedade. “Aqui não. Quiseram fazer um novo tipo de contrato de um assunto relativamente novo, porque esses aplicativos começaram a aparecer somente em 2012, sem que exista um amadurecimento do assunto e sem que tivesse tido um amplo diálogo com os envolvidos”, afirma.
Na opinião de Martins, a proposta de revisão de 1170 artigos do Código Civil, o que representa mais da metade do atual texto, “gera uma insegurança jurídica muito grande e é péssimo para as empresas”, diz, acrescentando que o investimento das companhias está atrelado a um cenário de leis e essas alterações podem atrapalhar.
Nesse sentido, uma mudança que pode prejudicar a vinda de investimentos do exterior, é a condição, prevista no inciso II, do artigo 1137, de que as empresas que quiserem exercer suas atividades no Brasil tenham sede física e representante com poderes amplos no país.” Isso é o mesmo que vedar que empresas estrangeiras atuem aqui”, diz Martins.
Outro ponto que pode prejudicar os negócios, se o anteprojeto for aprovado como está, é a permissão para se quadriplicar o valor de indenização por danos morais cobrada de empresas, em caso de reincidência em casos graves. A previsão está no parágrafo 4º, do artigo 944 A
“Isso é uma coisa que não conseguimos explicar para os clientes estrangeiros porque, além de indenizar por danos extrapatromoniais, no Brasil ainda existe o dano moral, cujo valor é estipulado pelo juiz. E, se esse anteprojeto passar como está, esses valores poderão passar a ser muito malores”, diz.
Mas também há os artigos do anteprojeto, referentes a contratos empresariais, bem avaliados por especialistas. Segundo a relatora da subcomissão de direito de empresa do anteprojeto, a advogada Paula Forgioni, professora titular e chefe do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP, nem todas as propostas analisadas foram acolhidas. “Mas temos evoluções, principalmente para as sociedades limitadas”, diz.
O destaque positivo são regras mais claras para a apuração de haveres no caso de dissolução parcial da sociedade limitada, com a retirada de um sócio do quadro societário – seja por exclusão, morte ou exercício do direito de retirada. Elas estão previstas nos artigos 599 a 609.
“Hoje existe muita divergência jurisprudencial sobre o tema, o que tem gerado insegurança e imprevisibilidade”, diz Paula.
A inclusão no código de um novo tipo de contrato, de distribuição empresarial, que trata da revenda de produtos, também é apontada como medida favorável ao ambiente de negócios (artigo 721-A). “Nesse caso, já é uma prática disseminada, mas é importante estar no código”, diz Doron.