A reforma tributária instituída pela Emenda Constitucional nº 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar nº 214/2025 trouxe profundas alterações ao sistema de tributação sobre o consumo, com impactos diretos sobre o setor de saneamento básico. A substituição de tributos como PIS, COFINS, ICMS e ISS por CBS e IBS, além da instituição do Imposto Seletivo, modifica sensivelmente a estrutura de custos das concessionárias e reconfigura o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos.
Em um contexto regulatório complexo, tais mudanças despertam preocupações quanto à sustentabilidade dos serviços, aos investimentos previstos para a universalização até 2033 e à efetiva proteção dos direitos fundamentais ligados ao acesso à água e ao esgoto tratados.
Especialistas apontam que a exclusão do saneamento da lista de setores com alíquota reduzida implica aumento significativo da carga tributária – de cerca de 9,74% para até 28% –, o que eleva os preços finais ao consumidor, afeta diretamente as populações mais vulneráveis e desafia a viabilidade econômica de projetos já contratados. Eles afirmam que o novo arranjo tributário agrava um cenário já pressionado por obrigações de investimento, em um setor reconhecido como essencial à saúde pública e ao desenvolvimento social e econômico.
Segundo Luísa da Cunha Cardoso e Leonardo Frey Chaves, a não inclusão dos serviços de água e esgoto entre os setores com alíquota reduzida coloca em risco o equilíbrio econômico-financeiro das concessões de saneamento. Embora o Senado tenha aprovado tal inclusão, a Câmara dos Deputados a retirou sob a justificativa de evitar aumento na alíquota padrão. Essa decisão pode fazer com que a carga tributária do setor salte para 26,5%, forçando revisão tarifária e comprometendo a expansão dos serviços.
Os autores destacam que, conforme a LC 214/25 e a Norma de Referência nº 05/24 da ANA, eventuais impactos tributários devem ensejar pedidos de reequilíbrio contratual, inclusive durante o período de transição previsto nos artigos 125 a 133 do ADCT. Nesse sentido, a legislação prevê mecanismos específicos para mitigar tais efeitos, mediante ajuste tarifário ou revisão da remuneração contratual, desde que comprovado o desequilíbrio financeiro decorrente da nova tributação.
Na avaliação de Ivo Ricardo Lozekam, a elevação da carga tributária no setor de saneamento ignora sua essencialidade e pode resultar em tarifas mais altas, prejudicando especialmente os mais pobres. O autor critica a justificativa dos legisladores que apontaram o mecanismo de cashback como solução compensatória – já que ele se restringe a famílias com renda de até meio salário mínimo, e prevê a devolução de apenas 20% dos tributos pagos em contas de água, esgoto e luz.
Para Lozekam, essa compensação é insuficiente para atenuar os efeitos da elevação tributária, sobretudo diante da realidade de que cerca de 44% da população brasileira não têm acesso à coleta de esgoto e 15% vivem sem água potável. A consequência prática, adverte, será o aprofundamento das desigualdades e o enfraquecimento da meta de universalização prevista no marco do saneamento.
Bruno Guimarães reforça que a decisão de não equiparar os serviços de saneamento aos de saúde, no tocante à alíquota diferenciada, é um erro estratégico com repercussões amplas. O autor lembra que, até a reforma, o setor encontrava-se fora do alcance do ISS por força de veto presidencial à época da LC 116/03, justamente para preservar sua viabilidade econômica. A nova sistemática, ao instituir a incidência plena do IBS sobre os serviços de saneamento, rompe com esse entendimento e impõe um aumento tarifário estimado em até 18% para a população em geral e 6,5% mesmo para beneficiários do cashback.
Para Guimarães, isso compromete diretamente os princípios da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde, pilares do marco regulatório do saneamento (Lei nº 11.445/07 e Lei nº 14.026/20). O autor sustenta que a universalização do acesso só será possível se o setor for resguardado dos efeitos negativos da tributação, o que não ocorreu.
Dessa forma, é convergente a crítica à decisão legislativa de excluir o saneamento básico do regime de alíquota reduzida no novo sistema tributário. Embora apontem soluções regulatórias para recomposição contratual, é notório que os efeitos da medida vão além do plano econômico, colocando em risco metas nacionais de universalização e direitos fundamentais da população.
Em um país onde milhões ainda carecem de acesso a serviços básicos, a escolha política de tributar mais um setor essencial poderá significar retrocessos profundos e duradouros.