O mercado imobiliário brasileiro está diante de uma encruzilhada. A recente reforma tributária, ao substituir tributos tradicionais pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), vem levantando dúvidas sobre o futuro do Regime Especial de Tributação (RET). Criado para garantir simplicidade e previsibilidade, o regime foi o alicerce sobre o qual milhares de incorporações foram viabilizadas nas últimas duas décadas. Agora, paira a questão: sobreviverá o RET em sua forma atual ou será engolido pela nova lógica do IVA dual?
As incorporadoras, que se habituaram a recolher IRPJ, CSLL, PIS e Cofins de maneira unificada a 4% da receita — ou até 1% nos programas habitacionais de interesse social, passam a encarar um cenário muito mais fragmentado e potencialmente oneroso. Se, por um lado, o texto legal prevê regras de transição até 2029, por outro, após 2033 a realidade aponta para uma carga que pode alcançar níveis inéditos no setor.
Mais do que discutir percentuais, o desafio está na própria mecânica do sistema. A possibilidade de créditos de IBS e CBS é vendida como um amortecedor, mas sua efetividade dependerá da estrutura de cada empreendimento. Em um setor marcado por margens estreitas e alto custo do capital, qualquer incerteza pode redefinir estratégias de investimento e comprometer o preço final dos imóveis.
Segundo Rafael Camara, a reforma não extingue o RET, mas o restringe ao campo do IRPJ e da CSLL. Com a entrada em vigor da Lei Complementar nº 214/2025, PIS e Cofins saem de cena, substituídos por CBS e IBS, que passam a ser recolhidos separadamente no regime não cumulativo. A alíquota de referência do IVA dual, estimada em 28%, terá redução de 50% para o setor, resultando em carga efetiva de 14% sobre a venda de imóveis novos.
A regra de transição, prevista no artigo 485 da referida lei, permite que empreendimentos iniciados até 2029 permaneçam no modelo atual, limitando a tributação a 4% ou 1% até sua conclusão, mas sem direito a créditos de insumos. O risco é que, a partir de 2033, as incorporadoras enfrentem elevação significativa de custos e complexidade administrativa, exigindo planejamento contábil mais sofisticado.
Ellen Akemy Kuroce e Filipe Saraiva dos Santos destacam que a própria reforma criou uma alternativa transitória. O artigo 485 da LC nº 214/2025 possibilita às incorporadoras optar, até 31 de dezembro de 2028, por um sistema em que o CBS substitui PIS e Cofins dentro do RET, mantendo as alíquotas unificadas de 4% e 1%.
Apesar de garantir estabilidade formal, essa escolha impõe uma limitação relevante: a impossibilidade de gerar créditos tributários, o que pode deixar tais empreendimentos em desvantagem competitiva frente a operações fora do regime. Os autores observam ainda que, fora da transição, o CBS deverá ser apurado “por fora”, com alíquota reduzida em 50% para as incorporações, chegando a cerca de 14%. Esse cálculo poderá ser suavizado pela aplicação dos redutores de ajuste (artigo 257 da LC 214/2025) e do redutor social (artigo 259), que permitem deduções expressivas sobre a base de cálculo.
Embora o RET preserve vantagens pontuais, a reforma impõe maior complexidade e a necessidade de repensar estratégias de planejamento. Para Lucas Pereira Santos Parreira, o impacto vai além de ajustes técnicos. Em sua análise, o RET representou por anos um “oásis” tributário, em que cada Sociedade de Propósito Específico (SPE) recolhia apenas 4% da receita bruta, garantindo previsibilidade a empreendimentos de longo prazo. A entrada do IVA dual, com alíquota de 27% — ainda que reduzida para 14% no setor —, ameaça colapsar esse modelo.
O autor chama atenção para dois pontos críticos: a tributação da venda de imóveis e a fragilidade do sistema de créditos. Questões como o tratamento do custo do terreno ou a limitação de créditos sobre serviços podem minar a promessa da não cumulatividade. Além disso, ele projeta efeitos colaterais indesejados: fortalecimento de práticas de permuta para reduzir a base tributável, migração de demanda para o mercado secundário e expansão da informalidade nas reformas e revendas. Sem ajustes, o setor pode viver uma crise de identidade, em que seu modelo de sucesso passa a ser incompatível com o novo regime.
A leitura conjunta dessas análises atuais evidencia que o RET não desaparece, mas perde protagonismo. A coexistência com o IVA dual desloca o regime para um papel secundário, restrito à renda, enquanto IBS e CBS se tornam os verdadeiros protagonistas da tributação imobiliária. Essa mudança rompe com a simplicidade que marcou o setor desde 2004 e inaugura uma fase de maior incerteza.
As regras de transição aliviam momentaneamente a carga, mas à custa da renúncia ao direito de créditos. Essa contradição pode gerar desequilíbrios concorrenciais, uma vez que empresas fora do regime oferecem vantagens adicionais a adquirentes. O dilema, portanto, não é apenas jurídico, mas estratégico, pois envolve a atratividade dos empreendimentos frente ao mercado.
O futuro da incorporação imobiliária dependerá então da capacidade de adaptação das incorporadoras. Planejamento tributário, modelagem contratual e até mesmo pressão política por ajustes regulatórios surgem como medidas inevitáveis. Se o RET foi o alicerce de uma era de expansão, sua limitação imposta pela reforma obriga o setor a repensar suas bases para sobreviver em um cenário de maior onerosidade e volatilidade normativa.
Fonte: https://tributario.com.br/a/ret-na-corda-bamba-com-a-reforma-tributaria-2/