A desconsideração da personalidade jurídica – confusão patrimonial, grupos econômicos e os impactos no âmbito tributário e penal

Por Juarez Arnaldo Fernandes

A desconsideração da personalidade jurídica é um dos instrumentos mais relevantes no sistema jurídico, utilizado de forma excepcional para romper a separação entre a pessoa jurídica e seus sócios ou administradores, com a principal função de coibir abusos da autonomia patrimonial, visando responsabilizar diretamente os indivíduos que se beneficiaram de práticas ilícitas ou lesivas aos credores, mecanismo esse, especialmente relevante em situações que envolvem confusão patrimonial ou a manipulação de estruturas empresariais em grupos econômicos, e quando tais práticas são deliberadas e realizadas com dolo ou má-fé, podem não apenas configurar violações no âmbito empresarial e tributário, mas também implicar graves repercussões criminais.

Importante destacar, que com o advento da Lei da Liberdade Econômica, veio uma inovação de conceito em conformidade com a inclusão no art. 50 do Código Civil, cuja desconsideração da pessoa jurídica, deve haver a comprovação da existência de dolo especifico dos sócios da pessoa jurídica.

Seguindo, no contexto de grupos econômicos, a aplicação da desconsideração ocorre quando empresas formalmente independentes operam como uma unidade econômica, mas utilizam essa aparente autonomia para diluir responsabilidades, ocultar bens ou frustrar credores e o fisco, embora, em teoria, cada pessoa jurídica possua uma personalidade própria, a realidade muitas vezes revela que essas empresas compartilham recursos, decisões e até patrimônios, com uma interligação abusiva caracterizando a manipulação do grupo econômico e justificando a extensão da responsabilidade patrimonial, atingindo não só a empresa devedora, mas todas as entidades e indivíduos que dela se beneficiaram.

Importante destacar o entendimento de FERRAGUT, acerca dos efeitos da desconsideração, que “seus efeitos atingem somente o ato abusivo, preservando-se a personalidade de um detrimento do sócio ou administrador que praticou o ato. A pessoa jurídica permanecerá  existindo, com todas as suas prerrogativas  legais e responsabilidades pelos demais atos, que não o abusivo”, e segue em outro ensinamento, “nas hipótese em que houver responsabilização pessoal dos administradores decorrentes de ato doloso, tal como preveem os artigos 135 e 137 do CTN, a desconsideração da personalidade jurídica estará sendo aplicada, pois se superará a autonomia patrimonial com a finalidade de se responsabilizar o autor da infração, cujo patrimônio seria intocável não fosse a desconsideração”.

Já a confusão patrimonial é outro fator crítico que fundamenta a desconsideração da personalidade jurídica, tratando da falta de separação entre o patrimônio da empresa e o de seus sócios ou administradores, caracterizada por práticas como o uso de contas empresariais para despesas pessoais, a ausência de uma contabilidade regular e a apropriação indevida de bens da empresa, comprometendo essas práticas no direito tributário a transparência fiscal, dificultando a fiscalização e facilitando a evasão fiscal, e ao extrapolarem intencionalmente de forma a ocultar receitas ou fraudar a arrecadação, essas condutas configuram crimes tributários, nos moldes da Lei nº 8.137/1990.

Também, a desconsideração da personalidade jurídica desempenha um papel crucial no direito tributário, onde se mostra uma ferramenta indispensável para enfrentar fraudes fiscais, estruturas empresariais complexas, como empresas de fachada ou transferências artificiais de ativos, que são frequentemente  utilizadas para sonegar tributos e frustrar a execução fiscal, tornando-se a confusão patrimonial e os abusos dentro de grupos econômicos, barreiras ao cumprimento das obrigações fiscais, exigindo uma resposta coordenada dos órgãos fiscalizadores e do Judiciário para assegurar que os responsáveis sejam alcançados e os prejuízos ao erário reparados.

No tocante ao âmbito penal, a desconsideração da personalidade jurídica se mostra ainda mais relevante quando a empresa é utilizada como instrumento para a prática de crimes, como lavagem de dinheiro, evasão de divisas, corrupção e fraudes fiscais, e ao romper o “véu” da personalidade jurídica, o Judiciário pode responsabilizar diretamente os indivíduos que se valeram da empresa para cometer tais delitos, além disso, agentes como contadores, advogados e consultores que colaboram de forma consciente com essas práticas podem ser responsabilizados criminalmente, seja como coautores ou partícipes, reforçando a importância de uma atuação ética e diligente na gestão e na assessoria empresarial. Aqui, algo que vem evoluindo, mesmo que em hipótese, é a construção de um método de responsabilidade coorporativa compatível com o direito penal, um tema novo e em discussão, como nas palavras de BARRILARI, “a autorregulação, atrelada à responsabilidade penal da pessoa jurídica, pode construir um novo marco político-criminal corporativo. Evidentemente, essa mudança demanda uma nova consciência ética e social das empresas e dos indivíduos. Essa nova realidade é viável e muito desejável. O objetivo é auxiliar a construção de um padrão civilizatório mais elevado, em que a lei, a ética, o compromisso social e o respeito aos direitos fundamentais possam coexistir, em equilíbrio, com os interesses corporativos”.

No vínculo entre o direito tributário e penal, atuam como um meio eficaz de combate às fraudes estruturais e às estratégias ilícitas que prejudicam o interesse público, tendo no direito tributário, a proteção da arrecadação ao impedir que práticas abusivas dificultem o recolhimento de tributos, e no direito penal, assegura-se que os responsáveis pelas infrações, ao instrumentalizarem a empresa para atos ilícitos, sejam punidos, reforçando o compromisso do sistema jurídico com a justiça fiscal e a preservação da ordem pública, valendo lembrar o ensinamento de BALEEIRO, que enfatiza que os crimes contra a ordem tributária “são disciplinados em normas penais de sobreposição, de modo que sua identificação e penalização dependem da exata compreensão e extensão das normas tributárias, relacionadas com a espécie. Saber o que é tributo devido e se ele é devido ou quais são as obrigações acessórias, previstas nas leis tributárias, é essencial para o encontro da espécie penal”, continuando, “a lei penal, que descreve delitos de fundo tributário, como a sonegação fiscal, não pode ser aplicada sem o apoio no direito tributário, porque as espécies penas nela estabelecidas são complementadas pelas normas tributarias”.

Além das implicações jurídicas e financeiras, os atos que justificam a desconsideração têm reflexos profundos na sociedade, como a evasão fiscal e a manipulação empresarial, que afetam a arrecadação de recursos indispensáveis para a manutenção de serviços públicos essenciais, como saúde, educação e infraestrutura, por isso, a desconsideração da personalidade jurídica não se limita à proteção dos credores, mas também desempenha um papel de justiça social, responsabilizando aqueles que agem em detrimento do bem comum.

Com a evolução tecnológica e o fortalecimento dos órgãos de fiscalização, a detecção de práticas abusivas, como a confusão patrimonial e os esquemas fraudulentos em grupos econômicos, tornou-se mais eficaz, onde, com ferramentas que integram dados fiscais, bancários e societários aumentam a capacidade do Fisco de identificar inconsistências e responsabilizar os envolvidos, e nesse cenário, a transparência e as boas práticas de governança corporativa são indispensáveis para evitar litígios e preservar a integridade das operações empresariais, e ao adotarem tais práticas, as  empresas não apenas protegem seus gestores de consequências jurídicas e penais, mas também fortalecem sua reputação e sustentabilidade no mercado.

Dessa forma, a desconsideração da personalidade jurídica vai além de um mecanismo corretivo ou punitivo, mas se torna um instrumento essencial para promover integridade e responsabilidade no ambiente empresarial, tendo sua aplicação em casos de confusão patrimonial ou abuso de grupos econômicos, especialmente quando envolvem crimes tributários ou penais, a reafirmação no compromisso do ordenamento jurídico com a justiça, a proteção ao interesse público e o fortalecimento da legalidade, onde em um mercado cada vez mais fiscalizado e regulamentado, a ética e a transparência deixam de ser apenas valores desejáveis e passam a ser condições indispensáveis para a sobrevivência e o sucesso das empresas.

 

Fonte: https://tributario.com.br/juarezfernandes/a-desconsideracao-da-personalidade-juridica-confusao-patrimonial-grupos-economicos-e-os-impactos-no-ambito-tributario-e-penal/