Conversão substancial do negócio jurídico na teoria dos planos

Por Abrahan Lincoln Dorea Silva

A característica fundamental do negócio jurídico, de acordo com Antônio Junqueira de Azevedo, é a sua análise a partir do plano da validade. Para o autor, todos os fatos jurídicos podem ser examinados em dois planos: o da existência e o da eficácia. Assim, primeiro se verifica se há elementos para que o fato jurídico exista (plano da existência), averiguando-se, após, se ele passa a produzir efeitos (plano da eficácia).

Já que o negócio jurídico é espécie de fato jurídico, ele passa por esses dois planos, mas se exige também requisitos específicos para que a declaração seja válida, de forma que há, também, a avaliação do negócio jurídico no plano da validade.

O artigo 170 do Código Civil prescreve o seguinte a respeito da conversão substancial do negócio jurídico: “se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade”.

Diante da prescrição legal, é correto dizer que a conversão substancial do negócio jurídico se opera no plano da validade?

A questão será abordada em duas partes nesta coluna: (i) na primeira, será descrita a teoria dos planos, conforme proposição de Junqueira; (ii) na segunda, expor-se-á a conversão substancial do negócio jurídico sob a ótica desta teoria.

Teoria dos planos

Ao abordar as definições do negócio jurídico, especialmente as genéticas e funcionais, Junqueira propõe uma definição pela estrutura, isto é, com base na composição do negócio. Conforme expõe: “não se procurará mais saber como o negócio surge, nem como ele atua, mas sim, simplesmente, o que ele é”

O que o negócio é depende de uma visão a respeito do plano da existência, que permite uma decomposição do negócio jurídico em seus átomos, chamados de elementos, que existem em três tipos: gerais, categoriais e particulares.

Os elementos gerais são os que dependem todos os negócios jurídicos, sendo intrínsecos ou extrínsecos. Três são os elementos intrínsecos ou constitutivos: 1) a forma que a declaração toma, ou seja, o tipo de manifestação que a declaração veste (mímica, escrita, oral etc); 2) o objeto ou conteúdo do negócio, isto é, as cláusulas de um instrumento contratual, as disposições testamentárias etc; e 3) as circunstâncias negociais, aquilo que faz com que a manifestação de vontade seja “vista socialmente como destinada à produção de efeitos jurídicos”

Os elementos extrínsecos, por sua vez, são aqueles que não constituem os negócios, mas são indispensáveis a sua existência: agente, lugar e tempo. Dos elementos extrínsecos, dois são inerentes a todos os fatos jurídicos: lugar e tempo (afinal, todo fato ocorre no tempo e no espaço). Considerando que o negócio jurídico é uma espécie de ato jurídico, e todo ato jurídico envolve uma ação humana, então todo negócio jurídico tem, ao menos, um agente.

Os elementos categoriais caracterizam e diferenciam as espécies de negócios jurídicos. O contrato tem elementos categoriais para que exista, assim como o contrato de compra e venda. Descendo todas as abstrações, chega-se, ao final, aos contratos in concreto, isto é, aqueles que ocorrem no mundo. Biondo Biondi sintetiza isso de forma bastante simples e precisa: “a noção de negócio jurídico é uma fase de abstração em matéria de atos jurídicos.

Da venda realizada entre A e B, entre C e D (figuras concretas), se sobe à noção de compra e venda (primeira abstração); considerando, depois, a compra e venda, a locação e outras figuras similares, se atinge uma segunda abstração, que determina a noção de contrato; considerando, ainda, os contratos e os outros atos jurídicos, como, por exemplo, o testamento, o casamento, a aceitação de herança, se atinge uma ulterior abstração, constituída precisamente pelo negócio jurídico”.

Os elementos categoriais são derrogáveis (naturais) ou inderrogáveis (essenciais), decorrendo sempre da lei. A título de exemplo, a compra e venda tem três elementos categoriais inderrogáveis: coisa, preço e consentimento. Caso falte um deles, não haverá compra e venda. No entanto, há também consequências que decorrem do contrato de compra e venda que são chamadas de elementos categoriais derrogáveis, isto é, aqueles elementos que nascem com o negócio, mas podem ser afastados por manifestação de vontade. São exemplos a responsabilidade por vícios redibitórios e evicção, ambas derrogáveis pela vontade dos contratantes.

Por fim, os elementos particulares (acidentais) são as cláusulas específicas de cada negócio, as quais, diferentemente, decorrem sempre da vontade, como o termo, a condição e o encargo. Para Junqueira, trata-se de elementos “individualizadores de cada negócio efetivamente realizados”.

A validade do negócio jurídico é “a qualidade que o negócio deve ter ao entrar no mundo jurídico, consistente em estar de acordo com as regras jurídicas”. O plano da validade é composto por requisitos, os quais não são senão adjetivos aos elementos (elemento: agente; requisito: agente capaz), e dizem respeito a se o negócio, para o direito, vale ou não, decorrendo do descumprimento dos requisitos a nulidade ou anulabilidade.

O terceiro e último plano não trata, exatamente, de toda e qualquer possível eficácia do negócio jurídico, mas somente a sua eficácia jurídica, especialmente a eficácia própria ou típica, isto é, a eficácia manifestamente querida pelo declarante. Se o plano da existência tem elementos e o da validade requisitos, o plano da eficácia é dotado de fatores. Os fatores são extrínsecos ao negócio, mas contribuem para a obtenção do resultado desejado.

Os fatores de eficácia têm três espécies:

1) fatores de atribuição da eficácia em geral: “aqueles sem os quais o ato praticamente nenhum efeito produz”, a exemplo da condição suspensiva, que impede a produção de efeitos diretamente visados e outros que sejam substitutivos;

2) fatores de atribuição da eficácia diretamente visada: “são aqueles indispensáveis para que um negócio, que já é de algum modo eficaz entre as partes, venha a produzir exatamente os efeitos por ele visados”, situação em que, até a ocorrência do fator de eficácia, o negócio somente produz efeitos substitutivos dos efeitos próprios do ato; e

3) os fatores de atribuição de eficácia mais extensa: “são aqueles indispensáveis para que um negócio, já com plena eficácia, inclusive produzindo exatamente os efeitos visados, dilate seu campo de atuação, tornando-se oponível a terceiros ou, até mesmo, erga omnes”, a exemplo da cessão de crédito, quando o devedor é notificado e a cessão é registrada.

Conversão substancial do negócio jurídico sob a ótica da teoria dos planos

Diante da organização da teoria do negócio jurídico com fundamento na teoria dos planos, em qual deles se localizaria a conversão substancial do negócio jurídico? Apesar de se prever a conversão quando o negócio é nulo, a conversão, em si, opera no plano da existência.

A conversão substancial do negócio jurídico pode ser definida pela transformação de um negócio jurídico em outro, quando o negócio jurídico realizado for inexistente, inválido ou ineficaz e se possa presumir que as partes, caso tivessem ciência da invalidade, ineficácia ou inexistência, desejariam celebrar o outro negócio. E a conversão só é possível se houver, na declaração de vontade, elementos categoriais suficientes para a caracterização de um outro negócio jurídico.

Um exemplo bastante claro é a compra e venda celebrada entre ascendentes e descentes. Conforme prescrição do artigo 496 do Código Civil:

“É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido.”

A previsão da norma pretende evitar a quebra da igualdade de quinhões na sucessão, já que a compra e venda de ascendentes para descendentes geralmente é realizada como uma doação velada, mas não é caracterizada como antecipação de herança (o que a doação, naturalmente, é). Por isso que, para que a compra e venda seja válida, exige-se o consentimento dos demais herdeiros.

No entanto, em caso de anulação da compra e venda a pedido de um dos herdeiros, a compra e venda poderá ser convertida substancialmente em doação. Mas isso só será possível se o negócio for dotado dos elementos categoriais inderrogáveis da doação: manifestação do animus donandi e o acordo sobre a transmissão de bens ou vantagens. E caso se possa presumir, diante das circunstâncias negociais, que as partes desejariam ter celebrado uma doação.

Para operar a conversão substancial por invalidade ou ineficácia, deve haver, por ficção legal, a consideração de que os elementos categoriais inderrogáveis para caracterização da compra e venda inexistem (apesar de existirem). Por isso que, para Junqueira, trata-se sempre de um fenômeno de qualificação categorial e são estes elementos que devem ser avaliados no exame de viabilidade de conversão substancial do negócio jurídico.

 

Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-jul-08/a-conversao-substancial-do-negocio-juridico-na-teoria-dos-planos/