O processo de recuperação judicial é a medida emergencial e excepcional, que tem como principal objetivo preservar a função social da empresa no cumprimento das suas obrigações trabalhistas, comerciais e tributárias.
Com isso, o seu processamento é deferido pelo judiciário após análise criteriosa da situação econômica com possibilidade de reversão do quadro atual, de acordo com os requisitos previstos na legislação especial.
Ou seja, o deferimento da recuperação judicial por si só já precede de análise da situação econômica grave que a entidade empresarial se encontra, sendo certo que o período de execução do seu plano terá como objetivo o restabelecimento e cumprimento das obrigações financeiras assumidas.
A Lei n. 11.101/2005, com a redação dada pela Lei n. 14.112/2020, prevê expressamente que a decretação da recuperação judicial implica a suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor relativas a créditos ou obrigações, bem como a ”proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre seus bens, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais”, cujos créditos ou obrigações se sujeitarão ao plano recuperacional após aprovado.
Quanto aos créditos de natureza tributária, a legislação especial prevê que estes não se sujeitam ao plano recuperacional, contudo, a prática de atos constritivos em sede de ação de execução fiscal deverão ser previamente comunicados ao juízo da recuperação judicial pelo princípio da cooperação jurisdicional.
Ou seja, o andamento da ação para cobrança do crédito tributário não se suspende, contudo, a prática de atos constritivos sobre o patrimônio da entidade deverá ser analisada pelo juízo da recuperação judicial, sendo este o competente para dirimir sobre a possibilidade do ato de forma mitigada.
Tais previsões legais têm como finalidade dar efetividade aos princípios norteadores do instituto da recuperação judicial, notadamente ao disposto no caput do art. 47 da Lei nº 11.101/2005, segundo o qual “a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.
Contudo, ainda com tais determinação em legislação específica sobre o tratamento do crédito tributário da entidade em recuperação judicial, na seara penal o inadimplemento contumaz do tributo vem sendo criminalizado, com fundamento na Lei 8.137/1990.
A legislação especial prevê todo o tratamento específico ao crédito tributário inadimplido devido a situação de crise econômica que a entidade se encontra, sendo certo que a falta de recolhimento tributário, sem qualquer ato doloso ou fraudulento do administrador, é tipificada como crime de apropriação indébita tributária na seara penal.
O processo de recuperação judicial já observa um rito processual rigoroso, e a empresa as duras penas, visto seus recursos parcos, tenta manter sua atividade e cumprir com as obrigações assumidas no plano, sendo assim, muitas vezes o inadimplemento tributário temporário ocorre por mera falta de caixa para o seu cumprimento.
Ou seja, trata-se de ato do administrador com inexigibilidade de conduta adversa para fiel cumprimento das obrigações assumidas no plano recuperacional, comparado aos atuais parcos recursos da entidade empresarial.
O conceito de inexigibilidade de conduta adversa, caracteriza-se quando age o autor de maneira típica e ilícita, mas não merece ser punido, pois, naquelas circunstâncias fáticas, não lhe era exigível um comportamento conforme o ordenamento jurídico, sendo causa de exclusão da culpabilidade.
O critério “crise econômica” deve ser demonstrado durante a instrução para aplicação do instituto penal, e o fato da entidade empresarial se sujeitar ao plano de recuperação judicial convalida com o instituto excludente de culpabilidade com a chancela do próprio Poder Judiciário, a qual já analisou criteriosamente o estado emergencial da empresa para concessão da medida recuperacional.
Neste sentido a jurisprudência dos nossos tribunais é pacífica sobre o tema:
EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE SONEGAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. CONSUMAÇÃO. MATERIALIDADE, AUTORIA COMPROVADOS. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. ABSOLVIÇÃO. 1. A consumação de crime material contra a ordem tributária ocorre no momento da constituição definitiva do crédito tributário (Súmula Vinculante no 24). 2. Comete o delito tipificado no art. 337-A, do Código Penal o agente que suprime o pagamento de contribuição social previdenciária mediante omissão, em folha de pagamento ou documento de informações previsto pela legislação previdenciária, de fato gerador de tais contribuições. 3. O sujeito ativo do crime de sonegação de contribuição previdenciária cometido no âmbito de uma pessoa jurídica é, em regra, o seu administrador: a pessoa que detém o poder de gerência, o comando, o domínio sobre a prática ou não da conduta delituosa 4. Aplicável a causa supralegal de excludente de culpabilidade em decorrência da inexigibilidade de conduta diversa, diante das graves dificuldades financeiras enfrentadas pela empresa. 5. Apelação criminal provida. (TRF4, ACR 5016818-55.2013.4.04.7107, 8a Turma, Des. Rel. JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, j. 04.05.17. (g.n)
PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDÊNCIÁRIA. ART. 168-A, § 1o, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL. DIFICULDADES FINANCEIRAS. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE. CONFIGURAÇÃO. PROVIMENTO DO RECURSO. 1. Comete o delito tipificado no art. 168-A, § 1o, inciso I, do Código Penal o agente que deixa de recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados empregados. 2. No delito tipificado no art. 168-A do Código Penal são considerados autores os responsáveis pelo repasse das verbas à Previdência Social, pelo lançamento das informações nos documentos relacionados à Previdência Social e pelo pagamento do tributo. 3. As graves dificuldades financeiras enfrentadas pela empresa para adimplir com a obrigação tributária, devidamente comprovadas nos autos, constituem causa excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa. 4. Provido o apelo. (TRF4, ACR: 5012000-52.2016.4.04.7205, 8a Turma, Des. Re. CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ, j. 09/06/2021. (g.n)
Portanto, quando o mero inadimplemento tributário é tipificado como crime por parte de entidade empresarial, que se sujeita ao plano recuperacional, há um conflito de normas se analisado os requisitos de concessão da medida previstos na Lei n. 11.101/2005.
Não há concessão da recuperação judicial por parte do Poder Judiciário sem que haja uma criteriosa análise prévia da saúde financeira da entidade, portanto, a tipificação penal do mero inadimplemento tributário, sem comprovação de ato doloso ou fraudulento do administrador, é causa excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa para manutenção da função social da empresa.