Opinião: Lei do Carf e seus impactos na transação tributária

Após longo embate entre o governo federal e a sociedade civil, houve a publicação, no último dia 21 de setembro da Lei nº 14.689, tratando do voto de qualidade no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Muito embora esse tenha sido o tema central da lei — que eliminou a regra de desempate pro contribuinte criada pela Lei nº 13.988/2020 — as negociações no âmbito do Congresso Nacional acabaram por resultar em novas e relevantes disposições a respeito do instituto da transação tributária no âmbito federal.

Vamos a elas.

Artigo 25-A: criação de uma nova modalidade de transação?

Após alterar o artigo 25, do Decreto nº 70.235/1972, para excluir multas na hipótese de processo administrativo fiscal julgado em favor da Fazenda Nacional, por voto de qualidade, o legislador veiculou benefícios adicionais no artigo 25-A, inserido naquele mesmo decreto.

O novo dispositivo prevê que o sujeito passivo poderá também: (1) excluir juros de mora do débito total (caput); (2) parcelar o débito em até 12 meses (§ 1º); e (3) usar prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSLL (§ 3º), bem como precatórios (§ 10), para pagamento da dívida. Tudo isso, segundo o caput do artigo 25-A, desde que o devedor “se manifeste para pagamento” da dívida em até noventa dias.

Durante tal prazo, o § 9º do artigo 25-A estabelece que a certidão de regularidade fiscal não poderá ser obstada pelos créditos tributários objeto de “negociação”.

O uso da expressão “negociação”, juntamente com a menção a “acordo”, feita no caput do artigo 25-A, levantam a dúvida se a fruição de todos os benefícios adicionais acima ocorrerá automaticamente, a partir da tal “manifestação” do devedor, ou se, do contrário, haverá a necessidade de ser firmada uma transação específica, uma vez que se estará diante de um caso de extinção do crédito tributário mediante mútuas concessões dos sujeitos passivo e ativo da obrigação.

Independentemente da forma como o artigo 25-A será tratado e, eventualmente, regulamentado pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, parece certo que a exclusão dos juros de mora, prevista no caput, independe de qualquer juízo de conveniência e oportunidade por parte da administração tributária.

Nessa situação, a redução deverá ser automática, do mesmo modo como é automático o afastamento das multas, previsto no artigo 25, § 9º, bem como a exclusão dos encargos do Decreto-Lei nº 1.025/69, se o débito não for pago pelo sujeito passivo e acabe inscrito em dívida ativa, conforme artigo 25-A, § 8º.

Caso o “acordo” referido no caput seja tido como uma modalidade de transação, o que parece também certo é que as condições para tanto são distintas daquelas já reguladas pela Lei nº 13.988/2020: (1) o número de parcelas é menor; (2) não há descontos adicionais sobre o débito, já que multas e juros são excluídos automaticamente; e (3) não há limitador percentual, em comparação ao débito total, para o uso de prejuízo fiscal, base de cálculo negativa da CSLL e precatório.

Artigo 3º: transação específica de débitos inscritos

No artigo 3º, da própria Lei nº 14.689, há a explícita criação de uma nova modalidade de transação, de iniciativa do sujeito passivo, contemplando créditos tributários advindos de processos decididos por voto de qualidade e que tenham sido inscritos em dívida ativa.

O parágrafo único do artigo 3º, que acabou sendo vetado, previa que, ao regulamentar o caput, o procurador-geral da Fazenda Nacional deveria observar “condições não menos favorecidas do que as ofertadas aos demais sujeitos passivos” e considerar “o prognóstico do risco judicial de cada processo, observadas as disposições do § 9º-A do art. 25 e do art. 25-A do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972”.

O dispositivo foi rejeitado pelo Poder Executivo, sob o fundamento de que violaria o princípio da isonomia, na medida em que obrigaria a PGFN a adotar concessões, nas transações em questão, que poderiam “não ser adequadas na totalidade dos casos”. E isto porque seriam elas “genéricas e subjetivas”, sem o estabelecimento de “balizas ou condições”.

Conclui a mensagem de veto: “a Lei nº 13.988, de 2020, dispõe sobre a transação tributária e suas modalidades ofertadas aos contribuintes. Nessa Lei, estão delimitados os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária”.

Parece claro, portanto, que o veto resulta em mudança do alcance daquilo que foi deliberado pelo Poder Legislativo, o qual, ao criar outra modalidade de transação no artigo 3º, pretendia que ali se observassem concessão não menos favoráveis do que aquelas constantes do artigo 25-A.

Com o veto, a transação do artigo 3º é retirada desses parâmetros, sujeitando-se, então, às métricas e condições da Lei nº 13.988/2020.

Tal conclusão reforça a ideia de que o artigo 25-A trataria de uma nova modalidade de transação, com condições especiais e específicas, distintas daquelas da Lei nº 13.988/2020 e que seriam aplicáveis ao débito quando (1) ultrapassados os noventa dias referidos no caput do artigo 25-A e (2) formalizada a inscrição em dívida ativa.

Artigo 4º: direito à dispensa de garantia

Havendo a discussão judicial do crédito tributário mantido pelo Carf, mediante voto de qualidade, ficará dispensada a apresentação de garantia pelo sujeito passivo, desde que demonstre possuir “capacidade de pagamento”, o que é tratado no § 2º do artigo 4º.

Essa dispensa não será aplicada se o contribuinte, nos doze meses antecedentes à ação judicial, tiver falhado na manutenção de certidão de regularidade fiscal por mais de três meses, consecutivos ou não.

Se não houver tal obstáculo, a “capacidade de pagamento” será aferida considerando-se o seu patrimônio líquido, mediante a apresentação de: (1) relatório de auditor independente sobre as suas demonstrações financeiras; (2) relação de bens livres e desimpedidos para futura garantia do débito; e (3) comunicação à PGFN da alienação ou oneração desses bens (sob pena de medida cautelar fiscal). A “capacidade de pagamento” ficará comprometida, segundo o artigo 4º, § 2º, inciso IV, se o contribuinte possuir outros créditos com a Fazenda Pública, presentes ou futuros, em situação de exigibilidade.

Tudo isso, conforme o § 5º, deverá ser disciplinado pelo procurador-geral da Fazenda Nacional, sendo incabível, no entanto, submeter esse direito do sujeito passivo a juízos de conveniência e oportunidade típicos de uma transação tributária. O que pende de ser feito é, apenas e exclusivamente, a regulamentação da forma como a dispensa será avaliada e formalizada.

Tanto é assim que, no § 4º do artigo 4º, o legislador lembra que a regra de dispensa de garantia “não impede a celebração de negócio jurídico ou qualquer outra solução consensual… que verse sobre a aceitação, a avaliação, o modo de constrição e a substituição de garantias”.

Ou seja, a norma do artigo 4º, caput, faz parte do “pacote” automático de benefícios dados ao sujeito passivo, quando o seu processo for decidido por voto de qualidade no Carf.

Isso não impede, portanto, a celebração de um “negócio jurídico ou qualquer outra solução consensual” sobre a aceitação, a avaliação, o modo de constrição e a substituição de garantia, o que é assegurado, de modo geral, pela própria Lei nº 13.988/2020, nos seus artigos 11, 14 e 25.

Artigo 9º: ajustes na Lei nº 13.988/2020

Por fim, o artigo 9º, da Lei nº 14.689, traz os seguintes ajustes pontuais na lei geral de transação:

– inclui, no âmbito da transação federal, os débitos em dívida ativa sob a responsabilidade da Procuradoria-Geral do Banco Central;

– permite que o edital da transação, no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica, não exija que o contribuinte ou responsável obrigatoriamente observe o entendimento da administração tributária acerca da matéria objeto do acordo, relativamente a fatos geradores futuros ou não consumados;

– aumenta os benefícios aplicáveis a esse mesmo tipo de transação, para: (1) em geral, desconto de até 65% e prazo máximo de quitação de 120 meses; e (2) no caso de pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte, desconto de até 70% e prazo máximo de quitação de 145 meses;

– permite que o edital, na mesma situação de contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica, não obrigue o devedor a incluir na adesão todos os seus litígios relacionados à tese envolvida;

– inclui a possibilidade de uso de prejuízo fiscal nesse mesmo tipo de transação, determinando que os descontos obtidos pelo contribuinte serão excluídos da incidência de imposto de renda, CSLL, contribuição ao PIS e Cofins; e

– autoriza a realização de transação mesmo quando envolver tese objeto de jurisprudência vinculante favorável à Fazenda Nacional, o que até então era vedado pelo artigo 20, inciso II, alínea “b”, da Lei nº 13.988/2020, impedindo que o acordo fosse realizado com contribuintes com reduzida capacidade de pagamento e, portanto, e situações de baixo grau de recuperabilidade.

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Por José Luis Ribeiro Brazuna, advogado em São Paulo e Brasília, sócio fundador do Bratax (Brazuna, Ruschmann e Soriano Sociedade de Advogados), professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Mônica Biasoli Jorge Gomes Vilela,  advogada em São Paulo e associada ao Bratax (Brazuna, Ruschmann e Soriano Sociedade de Advogados) e especialista em Direito Constitucional Aplicado e Direito Tributário.

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