Por Beatriz Olivon
Por enquanto, o único voto proferido foi o do relator, ministro João Otávio de Noronha, contra essa possibilidade
A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) começou a julgar, na tarde de ontem, se associação civil sem fins lucrativos pode pedir recuperação judicial. Por enquanto, o único voto proferido foi o do relator, ministro João Otávio de Noronha, contra essa possibilidade. Ainda faltam quatro votos.
A discussão é importante porque a 3ª Turma já tem precedente para negar a possibilidade. Se ambas as turmas tiverem o mesmo entendimento, a discussão sobre o assunto no STJ praticamente se encerra. Isso porque o processo não seguirá para a 2ª Seção, que julga temas quando há divergência entre os colegiados.
No caso concreto, a Pro Saúde Associação Beneficente de Assistência Social e Hospitalar pediu a recuperação judicial. O advogado do grupo, Rafael Santana Coelho, afirmou, no julgamento, que o passivo da entidade é de R$ 700 milhões, enquanto há R$ 1,2 bilhão a receber da União e Estados.
Na sustentação oral, Coelho explicou que a empresa tem mais de cem funcionários e presta serviços, essencialmente, por meio de contratos com o poder público, com grande percentual de demandas do Sistema Único de Saúde (SUS), mas é uma entidade sem fins lucrativos. “Eu não teria uma crise se não fosse compelido à quebra de contrato por inadimplência de verbas públicas”, disse.
A Pro Saúde está impossibilitada de usar recursos que teria à disposição pela recuperação judicial para fazer frente à crise, segundo o advogado. “Não conseguimos avançar no cumprimento do plano porque sempre que há medida no primeiro grau sabemos que o posicionamento do segundo grau é que associação civil não faz jus à recuperação judicial”, afirmou o advogado.
“A liquidação é um procedimento antigo e ineficaz, por isso pouco usado”
— Daniel C. Costa
“Qual é a empresa privada hoje que tem interesse em prestação de serviços ao SUS? Não há empresas privadas, que distribuem lucros, brigando por esses contratos”, destacou ele sobre eventual impacto concorrencial da concessão de recuperação judicial.
Em seu voto, o ministro João Otávio de Noronha afirmou que toda clínica médica presta um serviço relevante à sociedade, mas nem todas estão sujeitas à recuperação judicial. O ministro disse também que a legislação brasileira não prevê a possibilidade de recuperação judicial para sociedades civis sem fins lucrativos, a qual é destinada a empresários e sociedades empresariais (REsp 2159844).
Ainda segundo o relator, a definição de empresa adotada pelas leis brasileiras não contempla sociedades sem fins lucrativos, mesmo que elas exerçam atividade econômica, porque não visam lucro nem distribuem lucro entre seus associados. Para Noronha, a extensão da recuperação judicial às entidades sem fins lucrativos poderia gerar insegurança jurídica e levar prejuízo a associados, com a conversão do plano em falência. Na insolvência civil, disse o ministro, há a possibilidade de concordata a partir de negociação, que parece ser o mais cabível na hipótese.
Na sequência, o ministro Marco Buzzi pediu vista, o que suspendeu a votação. Com isso, o processo voltará à pauta de julgamentos em até 90 dias.
A 3ª Turma do STJ já julgou o assunto, pela primeira vez, em outubro do ano passado. Na ocasião, os ministros impediram uma fundação de direito privado de pedir recuperação judicial.
Por maioria de votos, prevaleceu o entendimento do relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Para ele, o artigo 1º da Lei de Recuperação Judicial e Falências (nº 11.101, de 2005) deve ser interpretado de forma literal.
De acordo com Cueva, não há dúvida sobre a opção do legislador em não incluir os entes que, apesar de poderem sob certa perspectiva ser classificados como ‘agentes econômicos’, não são empresários. No voto, ele também citou a importância da preservação da segurança jurídica e do ambiente de negócios. Para o ministro, uma interpretação expansiva da lei teria impacto direto na concessão de crédito.
O voto do relator na 3ª Turma foi acompanhado pelos ministros Marco Aurélio Bellizze, Nancy Andrighi e Humberto Martins. Ficou vencido Moura Ribeiro, que resumiu a divergência afirmando que “fundação exerce inegável atividade econômica e, nesse contexto, a benesse da recuperação judicial deve ser acolhida”.
Sem a recuperação judicial, não há outra ferramenta para reestruturação, segundo o advogado Daniel Carnio Costa, professor da PUC-SP e ex-juiz da 1ª Vara de Falências e Recuperações de São Paulo. “Vamos permitir que essas entidades, por não serem empresariais, desapareçam e com elas desapareçam todos os benefícios econômicos e sociais que elas geram?”, questiona o advogado.
A insolvência civil é mais similar à falência, que é um processo de liquidação e não permite a recuperação da atividade, diz Carnio Costa. Para ele, a liquidação é um procedimento antigo e ineficaz, tanto que é pouco usado. Por outro lado, ainda que a decisão seja contrária à associação, afirma, será relevante porque pacificará o entendimento.