Opinião: Por que sociedades de profissões regulamentadas pagam ISSQN fixos

Advogados, contadores, engenheiros, médicos e outras profissões regulamentadas por lei, quando exercem suas atividades como pessoa física ou por meio de pessoa jurídica, por meio da constituição de sociedades simples, pagam um valor fixo de Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN), ao contrário de pessoas físicas que exercem profissões não regulamentadas ou pessoas jurídicas, constituídas sob a forma de sociedades empresárias, que pagam um percentual incidente sobre o valor da prestação de serviços.

Na prática, essa diferença de bases de cálculo conduz a uma enorme subtributação para os exercentes de profissões regulamentadas, que prestando serviço remunerado em mesmo valor que aquele pago às demais atividades, pagam muito menos imposto. A proposta de emenda constitucional, recentemente aprovada na Câmara dos Deputados, que pretende reformar a tributação sobre o consumo, termina com essa diferenciação histórica. Mas o curioso é que as pessoas se acostumaram com esse privilégio tributário concedido às profissões regulamentadas, cujos motivos parecem não ter justificativa jurídica nem econômica.

A competência municipal para instituir o ISSQN surgiu com a EC 18 de 1965, em seu artigo 15. Na Constituição de 1.967, esta competência veio no artigo 25, II, e não saiu mais. Antes do ISSQN, havia um imposto sobre indústrias e profissões, que surgiu como competência dos estados na Constituição de 1891 e passou a ser de competência dos municípios com a Constituição de 1946.

O Código Tributário Nacional (CTN), ao regular a base de cálculo do ISSQN em 1966, já previu, em seu artigo 72, que, quando se tratasse de prestação de serviço sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o imposto poderia seria calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis. Mas qual o fundamento para a possibilidade de alíquotas fixas, no caso de prestação de serviço sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte?

Alega-se que a motivação para este cálculo diferenciado seria “evitar que o ISS viesse a confundir-se com o imposto de renda sobre honorários ou salários, como acontecia com o antigo imposto de indústrias e profissões” [1]. Argumentava-se que a imprecisão constitucional da incidência e a indefinição da base de cálculo do antigo imposto de indústrias e profissões causavam sobreposição de incidências tributárias e invasão, pelos municípios, na competência tributária de outros entes. Ocorre que já à época havia entendimento pacificado pelo STF contrariando esta justificativa.

Em um julgamento de 1963 [2], não relacionado a serviços advocatícios, o STF decidiu que não havia concorrência entre o imposto de indústrias e profissões e o imposto de renda. De acordo com o STF, apesar de incidir sobre a receita bruta do contribuinte, o fato gerador do imposto de indústrias e profissões é outro: o exercício da indústria, comércio ou profissão no território do município. A argumentação de sobreposição entre os tributos é então baseada em uma premissa falsa e uma “confusão conceitual entre o fato gerador de um tributo e a sua base de cálculo” [3].

O anteprojeto de CTN, criado por uma comissão especial no âmbito do Ministério da Fazenda e que acabou sendo convertido no PL 4.834/54, ainda não tratava do ISSQN, porque, como visto, a competência municipal para instituição de um imposto sobre serviços só surgiu com a EC 18 em 1965 [4]. O PLS 13 de 1966, que resultou no atual CTN, por sua vez, já foi encaminhado ao Congresso prevendo a possibilidade de tratamento diferenciado, em caso de prestação de serviço sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte. Sua breve exposição de motivos, no entanto, não trouxe os fundamentos para que isso ocorresse [5].

O Decreto-lei nº 406/68, que revogou o CTN nesta parte e ainda se encontra vigente, reproduziu o tratamento diferenciado de tributação do ISSQN quando a prestação de serviços ocorresse por meio de trabalho pessoal do próprio contribuinte, mas, tal qual o PLS 13/66, também não trouxe qualquer explicação sobre o assunto [6]. Trata-se, portanto, de um dispositivo solto, desacompanhado dos fundamentos para sua criação.

A jurisprudência dos tribunais superiores vem não somente mantendo o dispositivo, como ampliando seu âmbito de abrangência. A manutenção do tratamento diferenciado para estes profissionais, em geral, ocorre porque o DL 406/68 foi recepcionado com status de lei complementar, o que implica na inconstitucionalidade de leis municipais que tentam dar um tratamento diverso à questão, o que ocorreu, por exemplo, nos RREE 220.323/2001 e 940.769/2019.

Mas os tribunais também vêm entendendo que este tratamento deve ser conferido para sociedades simples, mesmo que constituídas sob a forma de limitadas, porque tais sociedades teriam caráter pessoal e seriam prestadas de forma direta e pessoal pelos seus próprios sócios, como no caso de uma sociedade limitada de médicos, decidida no Earesp nº 31.0841/MS. Assim, deve-se multiplicar o valor fixo do ISSQN pelo número de profissionais da sociedade, ao invés de aplicar um percentual sobre o valor da prestação de serviço.

Interessante observar que, no próprio EAREsp. nº 31.0841/MS, reconhece-se que as sociedades simples também buscam lucros e se indica como fundamento de sua distinção para as sociedades empresárias o requisito organização dos fatores de produção, existentes nas sociedades empresárias e ausente nas sociedades simples.

A jurisprudência parece desconhecer que, de longa data, diversas sociedades de profissões regulamentadas se organizam como empresas, contratando empregados, associados, prestadores de serviços das mais diversas áreas, apegando-se à caricatura de poucos advogados ou médicos prestando serviços numa pequena sala ou consultório diretamente a seus clientes.

Se a fundamentação do CTN, em 1966, e do Decreto-lei n.º 406, em 1968, para estabelecer este regime diferenciado de tributação para os profissionais liberais era de evitar sobreposição de incidências e dupla tributação entre o ISS e o IR, esta justificativa não procede, nem juridicamente, nem economicamente. Primeiro, porque, tal como discutido desde a década de 1960 no STF, o fato gerador de ambos os tributos é diferente e o ônus econômico de cada um recai sobre pessoas diferentes: no imposto de renda, o ônus recai sobre o profissional liberal; em tributos sobre o consumo — atual ISS ou nos futuros IBS/CBS, o profissional somente aplica o tributo sobre os serviços na nota fiscal, mas quem arca com o ônus econômico são os tomadores, ao pagarem o preço dos serviços com o respectivo tributo ao profissional. Assim, não há sobreposição de incidências muito menos dupla tributação ou maior oneração aos profissionais liberais caso sejam submetidos ao regime normal de tributação do ISS.

Na verdade, a pretensa vedação de tributação pelo ISS com base na “importância paga a título de remuneração do próprio trabalho”, tal como hoje consolidada na jurisprudência do STF, não evita sobreposição de incidências nem dupla tributação — porque na verdade elas inexistem — mais cria um verdadeiro privilégio a estes profissionais liberais. Além disso, cabe ressaltar que a renda das sociedades uniprofissionais, assim como de outras empresas optantes por regimes simplificados de tributação, também é subtributada, além dos dividendos serem isentos. A margem de 32% de presunção de lucro na sistemática do Lucro Presumido (ou as alíquotas do Simples) é particularmente baixa se comparada com a margem de lucro efetiva destas sociedades e com a lucratividade de outras empresas do setor de serviços.

Há, ainda, quem afirme que o tratamento tributário favorecido em relação à base de cálculo seria decorrente do tratamento tributário mais rigoroso, em relação à responsabilidade tributária. Os sócios de sociedades simples possuem responsabilidade pessoal, quanto aos débitos de ISS. Mas não há qualquer nexo de causalidade entre as duas variáveis, pois, como visto, a justificativa teria sido um fundamento inexistente e superado de bitributação. Aliás, responsabilidade tributária deve ter relação com a infração e não com o montante de tributo a ser recolhido. Nesta linha, o STJ já afastou a barganha feita pela LC 123/06 com o instituto da responsabilidade tributária, que, por um lado, permitia o distrato de uma ME/EPP, mesmo que ela tivesse débitos tributários, mas, por outro, considerava o distrato, apenas para estas sociedades, como dissolução irregular da sociedade, atraindo a responsabilidade pessoal dos sócios (AgRg no AREsp. 504.349/RS, 2ª Turma, ministro Humberto Martins, julgado em 2014).

O mesmo comportamento teria consequências distintas, numa de troca entre a permissão de distrato e a responsabilidade pessoal dos sócios. As sociedades simples devem ter a mesma responsabilidade tributária das demais sociedades. Na tributação sobre o consumo, no caso, sobre a prestação de serviços, não deveria haver diferenciação da tributação com base em quem esteja prestando ou em como o prestador está organizado juridicamente.

O importante é ressaltar que o cálculo por meio de valores fixos é muito inferior à base de cálculo real do ISSQN — o preço dos serviços — que corresponde aos valores efetivamente auferidos por tais profissionais como remuneração do próprio trabalho. E a jurisprudência, alheia às verdadeiras corporações empresariais altamente lucrativas constituídas por estes profissionais, com enorme organização dos fatores de produção, estendeu para as sociedades que eles participam. A reforma tributária em discussão parece corrigir mais esta distorção ou privilégio, enraizado há anos, sem qualquer justificativa razoável ou correspondência com a capacidade contributiva dos contribuintes envolvidos.


[1] SOUSA, Rubens Gomes de. O Imposto sobre Serviços e as sociedades prestadoras de serviços técnicos profissionais, Revista de Direito Público nº 20, São Paulo: RT, abr./maio, 1972. Citação retirada de: https://www.conjur.com.br/2012-jun-27/consultor-tributario-sociedades-profissionais-pagar-iss-fixo

[2] https://periodicos.fgv.br/rda/article/download/25981/24841

[3] De acordo com a decisão “não é exato, como afirmam as impetrantes, que a questionada Lei nº 5.917 haja criado impôsto concorrente como de renda, ou de vendas e consignações. Neste passo, a brilhante argumentação das impetrantes, funda-se em premissa falsa, qual seja a confusão conceptual entre o fato gerador de um tributo e a sua base de cálculo. (…) Na espécie em exame, o fato gerador do impôsto é o exercício de qualquer atividade lucrativa (indústria, comércio ou profissão) no Município de São Paulo; e a base de cálculo é o movimento econômico do contribuinte, entendido êste como o equivalente à receita bruta do ano civil anterior ao exercício fiscal (Lei nº 5.917). Esclarecidos assim os conceitos básicos, percebe-se desde logo o equívoco das impetrantes ao afirmarem que o Imposto de indústrias e profissões incide sôbre a renda bruta do contribuinte, sôbre operações de venda e consignação, ou sôbre a transferência de mercadorias do estabelecimento matriz para a filial localizada fora do município. São todos êsses elementos formadores do movimento econômico do contribuinte e que servem para constituir a base de cálculo do impôsto em questão. O fato gerador é outro: é o exercício da indústria, comércio ou profissão no território do município”.

[4] Disponível em: https://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD07SET1954.pdf. Acesso em: 28/07/2023.

[5] Disponível em: https://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD15SET1966.pdf. Acesso em: 28/07/2023.

[6] Disponível em: file:///C:/Users/user/Downloads/colecao_leis_1968_parte1.pdf. Acesso em: 28/07/2023.

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Por Leonardo Alvim,  procurador da Fazenda Nacional, assessor do advogado-geral da União para questões tributárias e pesquisador do Insper.

Melina Rocha, consultora internacional, especialista em IVA e diretora de cursos na York University.

Sérgio Gobetti, economista, mestre e doutor pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisador de carreira do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e assessor econômico no gabinete da Secretaria de Fazenda do Rio Grande do Sul.

Revista Consultor Jurídico