Analisando os dados abertos [1] do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda), com última atualização datada de 24/2/2023, percebe-se que o grande estrago ao contencioso administrativo fiscal, cuja estável regulamentação feita pelo Decreto 70.235/72 já conta com mais de 50 anos, foi a proibição de que processos com valor de até R$ 1,3 milhão seja apreciados pelo tribunal. Esta agressão ao direito de defesa e à isonomia se encontra no artigo 4º da MP 1.160/2023, que alterou a Lei nº 13.988/2020 [2] e instituiu o conceito de “contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade”, definindo-o como o “lançamento fiscal ou controvérsia que não supere mil salários-mínimos” [3].
Note-se que, de 1972 até hoje, as alterações introduzidas no PAF, em regra, foram no sentido de modernizar ou robustecer a isenção dos julgadores e a isonomia entre as partes no contencioso; a exemplo da criação das Delegacias Regionais de Julgamento (DRJ), que separou as competências das autoridades lançadora e julgadora (Lei 8.748/93) e, posteriormente, da instituição da colegialidade no âmbito destas DRJ (MP 2.158-35), conferindo-se maior rigor técnico e democrático às decisões.
Exceção a esta tendência modernizante foi a tentativa de instituir a exigência de depósito recursal no valor de 30% do crédito discutido (MP 2.176/2001, Lei 10.522/2002) [4], prontamente rechaçada através da ADI nº 1976-7 DF [5], por meio da qual o STF consagrou o direito dos administrados à dupla instância e afastou, por cerceamento ao direito de defesa, a exigência inconstitucional.
Voltando aos dados abertos do Carf, observa-se o seguinte perfil nos tipos de votação, nos últimos três anos, desde que instituído o empate em favor dos contribuintes, por força da Lei nº 13.988/2020 [6]:
Os julgamentos unânimes foram 88,7% do total em 2020; 78,9% em 2021 e 79,2% em 2022. Por sua vez, julgamentos por maioria foram, respectivamente, 9,1%, 16,9% e 16,6%, enquanto as decisões por voto de qualidade atingiram o percentual de 1,9%, 2,7% e 2,6%. Nesse contexto, as votações com empate, resolvidas em favor do Contribuinte foram 0,4% em 2020; 1,6% em 2021 e 1,7% em 2022.
Ou seja, a soma dos votos de qualidade e do empate pró-contribuinte, desde a edição da Lei nº 13.988/2020, representa 2,5% em 2020, 4.3% em 2021 e 4,3% em 2022. Os casos de desempate em favor dos recorrentes, nos termos da nova lei, foram de 0,4%, 1,6% e 1,7%. Portanto, um montante bem pouco relevante, se comparado aos julgamentos por unanimidade e por maioria, como se pode verificar do quadro acima.
Cabe lembrar que, a partir da Lei nº 13.988/2020 [7], foi extinto o voto de qualidade pró-Fazenda, nos processos de determinação de crédito tributário; tendo persistido a regra em desfavor do Administrado (voto de qualidade) nos processos aduaneiros e em outros não considerados tributários. O artigo 1º da MP nº 1160 [8] revogou essa prerrogativa conquistada pelos contribuintes [9], o que gerou grande comoção no meio jurídico, inclusive com a atuação da OAB, que teria feito um “acordo” com o governo federal, a ser apresentado nos autos da ADI na qual se contesta referido artigo, como forma de mitigar os efeitos perversos da volta do voto de qualidade [10].
Ocorre que “o diabo mora nos detalhes” e, apesar de concordarmos com a inconstitucionalidade do retorno do voto de qualidade, esta agressão aos contribuintes é até modesta, quando comparada à discriminação odiosa, ao franco ataque ao direito de defesa, à interdição ao devido processo legal perpetrados contra toda uma massa de administrados, em face dos quais sejam lavrados autos de infração com valores de até R$ 1.302.000. Este é o verdadeiro desmonte do processo administrativo fiscal. Senão, vejamos.
Em janeiro de 2023, o estoque de processos no Carf era de 90.648 processos, distribuídos nas seguintes faixas de valor [11]:
São 171 processos na faixa de R$ 1 bilhão ou mais; 1.279 entre R$ 100 milhões e R$ 1 bilhão; 4.625 entre R$ 15 milhões e R$ 100 milhões; 19.902 variando entre R$ 1.302.000,00 e R$ 15 milhões; 32.534 na faixa entre R$ 78.120,00 e R$ 1.302.000,00 e, por fim, 32.137 processos abaixo de R$ 78.120,00.
Nota-se que a soma dos processos até R$ 1.302.000,00 resulta em 64.671 processos, ou 71,34% do acervo.
Roga-se atenção aos números: a tendência é que cerca de 70% dos processos que atualmente acessam o Carf estarão excluídos da competência de julgamento desse órgão. Isso é gravíssimo! Muito mais do que os 0,4%, 1,6% ou 1,7% dos processos que tiveram o privilégio do empate pró-contribuinte em 2020, 2021 e 2022. Isto nada mais é do que um aniquilamento do direito de petição a um colegiado paritário e de tradição técnica de excelência.
Sem contar com a falácia de se considerarem processos de menos de R$ 1,3 milhão como revestidos, em si, de baixa complexidade. Como ex-julgadora, tanto no âmbito da Receita Federal quanto do Carf, a autora deste artigo pode testemunhar, com tranquilidade, que valor do crédito julgado não guarda relação direta com complexidade da matéria decidida. Menos ainda se sustenta o sofisma quando se tem em conta o volume de processos envolvidos e a realidade econômica dos contribuintes.
É de sabença geral o pendor fiscalista das DRJ; o que é até natural, dada sua vinculação aos atos administrativos emanados da própria Receita, como Soluções de Consulta e Instruções Normativas, as quais, não raro extravasam os limites das leis. Pois bem: A partir de 3 de abril de 2023 passa a viger a Portaria MF nº 20/2023 [11], que descaracteriza a colegialidade das DRJ, criando um julgamento monocrático e retira do âmbito do Carf os processos que não superem mil salários-mínimos (valor do principal mais multa). A ideia é que a DRJ se torne um miniCarf, com “duplo grau”, composto apenas de agentes do Fisco.
O Carf nunca foi e nunca poderá se tornar um tribunal de elite. A criação desta desigualdade é um ataque aos contribuintes, à advocacia e ao devido processo legal. Coibir esta agressão requer, mais do que um acordo, uma atuação ofensiva da OAB.
[1] https://carf.economia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-2023/dados-abertos-202302-final.pdf
[2] Medida Provisória 1160/2023: artigo 4º A Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Artigo 27-B. Aplica-se o disposto no artigo 23 ao contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade, assim compreendido aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere mil salários mínimos” (NR).
Lei nº 13.988/2020: Artigo 23. Observados os princípios da racionalidade, da economicidade e da eficiência, ato do Ministro de Estado da Economia regulamentará:
“I – o contencioso administrativo fiscal de pequeno valor, assim considerado aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere 60 salários mínimos; (Vigência)
Parágrafo único. No contencioso administrativo de pequeno valor, observados o contraditório, a ampla defesa e a vinculação aos entendimentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o julgamento será realizado em última instância por órgão colegiado da Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, aplicado o disposto no Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, apenas subsidiariamente. (Vigência)“.
[3] Salário-mínimo em março de 2023: R1.320,00.
[4] Lei nº 10.522/2002: Artigo 33. (…).
- 2o Em qualquer caso, o recurso voluntário somente terá seguimento se o recorrente o instruir com prova do depósito de valor correspondente a, no mínimo, trinta por cento da exigência fiscal definida na decisão.(Incluído pela Medida Provisória nº 2.176-79, de 2001)(Vide Adin nº 1.976-7).
[5] ADI 1976-DF. Relator ministro Joaquim Barbosa: “A exigência de depósito ou arrolamento prévio de bens e direitos como condição de admissibilidade de recurso administrativo constitui obstáculo sério (e intransponível, para consideráveis parcelas da população) ao exercício do direito de petição (CF, artigo 5o, XXXIV), além de caracterizar ofensa ao princípio do contraditório (CF, artigo 5º, LV). A exigência de depósito ou arrolamento prévio de bens e direitos pode converter-se, na prática, em determinadas situações, em supressão do direito de recorrer, constituindo-se, assim, em nítida violação ao princípio da proporcionalidade. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do artigo 32 da MP 1699-41 – posteriormente convertida na lei 10.522/2002 -, que deu nova redação ao artigo 33, §2°, do Decreto 70.235/72”.
[6] Dados retirados da Tabela Recursos Julgados – Tipo de Votação – Carf-Até Dezembro/2022.
[7] Lei nº 13.988/2020: Artigo 28. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte artigo 19-E: “Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o §9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.”
[8] MP 1160/2023: Artigo 1º Na hipótese de empate na votação no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o resultado do julgamento será proclamado na forma do disposto no §9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972.
[9] MP 1160/2023: Artigo 5º Fica revogado o artigo 19-E da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002.
[10] https://www.conjur.com.br/2023-fev-14/governo-oab-fecham-acordo-volta-voto-qualidade
[11] Dados retirados da Tabela Estoque do Carf – Por faixa de valor- Janeiro /2023.
[12] Portaria MF nº 20/2023: Artigo 3º Compete às DRJs apreciar a impugnação ou a manifestação de inconformidade apresentada pelo sujeito passivo, observado o seguinte:
I – em primeira instância, por decisão colegiada, a impugnação ou manifestação de inconformidade relativa a contencioso administrativo fiscal cujo lançamento ou controvérsia supere mil salários mínimos;
II – em primeira instância, por decisão monocrática, a impugnação ou manifestação de inconformidade apresentada pelo sujeito passivo, em relação ao:
- a) contencioso administrativo fiscal de pequeno valor, assim considerado aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere sessenta salários-mínimos; e
- b) contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade, assim considerado aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia seja superior a sessenta salários-mínimos e não supere mil salários mínimos; e
III – em última instância, por decisão colegiada, os recursos contra as decisões de que trata o inciso II.
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Por Mônica Elisa de Lima, advogada, sócia do Escritório Lima e Oliveira Brito Advogados, mestre em Direito pela Universidade Cândido Mendes (Ucam), ex-conselheira da 3ª Seção do Carf e ex-auditora Fiscal da Receita Federal do Brasil.
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